CAIO DO VALLE - O Estado de S.Paulo
Eles vieram da destruição para construir São Paulo e, de certa forma,
reconstruir as próprias vidas. São professores, universitários e até atletas que
falam duas, três, quatro línguas e trabalham como operários, concretando lajes e
chumbando armações de ferro por salários de R$ 1,2 mil, em média. Estão a
milhares de quilômetros de seu país, o Haiti, na América Central, e a poucos
passos da arena que vai simbolizar a alma esportiva da capital na Copa do Mundo
de 2014, o estádio do Corinthians, o Itaquerão, na zona leste.
Desde o fim do ano passado, o consórcio que toca as obras do novo complexo
viário no entorno da futura arena têm empregado mão de obra haitiana. Ávidos
para reerguer lares e famílias, destroçados pelo terremoto que atingiu o país
caribenho em janeiro de 2010, matando mais de 200 mil pessoas, esses
trabalhadores - e também trabalhadoras - buscam no Brasil as oportunidades que
ainda não encontraram em sua terra natal.
Sergo Pierre, de 35 anos, deixou para trás a mãe, três irmãos e a faculdade
de Direito - já havia cursado três anos e sete meses da graduação - para tentar
a vida em São Paulo, sem ideia do que o esperava. "Não conhecia ninguém aqui,
mas sempre ouvi falar da cidade, uma das maiores do mundo."
Há um ano, veio atrás do que a metrópole poderia oferecer. Primeiro, ganhou a
vida numa cooperativa. Depois, como encanador. Faz cinco meses que trabalha como
pedreiro, com carteira assinada e os devidos direitos trabalhistas, na
construção de viadutos, túnel e alças de acesso que começam a mudar as feições
de Itaquera.
No total, são 1,1 mil empregados - 50 vindos do Haiti, entre eles duas
mulheres - empenhados no projeto de R$ 257 milhões, previsto para ser entregue
em março de 2014, três meses antes do Mundial.
O grupo de estrangeiros, porém, cresce pouco a pouco. Por isso, cada vez mais
uma das línguas que se ouvem perto do Itaquerão é o crioulo. E o francês,
obviamente. É que esses são os dois idiomas oficiais daquele país, onde também
se aprende inglês e espanhol na escola. Quem conta é Gamisson Francisque, de 25
anos, que já arranha o português. "Eu estudava Engenharia Mecânica, estava no
terceiro ano quando vim. Ainda quero retomar os meus estudos", diz.
Assim como ele, seus colegas de trator, alicate e betoneira também sonham em
voltar para as atividades originais. O caso mais emblemático é o de Samuel
Alcine, de 23 anos. Hoje, o jovem, ex-jogador da seleção de futebol do Haiti,
opera uma britadeira. "É complicado acompanhar a construção do estádio do
Corinthians tão de perto e não sonhar jogar ali um dia", afirma Alcine.
A distância. A saudade, uma palavra tão portuguesa, rapidamente se incorporou
ao vocabulário dos estrangeiros. Luckner Honorat, de 34 anos, que era professor
em seu país, sente falta da família. Sua mãe morreu em dezembro. Logo depois,
ele optou pelo Brasil. Pierre, por sua vez, tem de dividir a saudade entre o
Haiti e a França, onde trabalha sua mulher, a quem não vê há cerca de três
anos.
A administradora da obra, Cassia Waleska Pereira, de 49 anos, tenta, de
alguma forma, amenizar a nostalgia dos trabalhadores. Ela é uma espécie de mãe
para os haitianos que chegam ao Consórcio Viário Zona Leste. Desde a primeira
"turma", formada há cinco meses, é responsável por assegurar que os novos
profissionais, todos com carteira assinada, se entrosem à equipe. "O que a gente
sente é que eles precisam de trabalho nem que for só para comer."
Segundo ela, existe uma dificuldade para a contratação de mão de obra
nacional. Por isso, a absorção
de haitianos.
Com o tempo, o envolvimento foi se tornando maior e ela já vai a festas dos
funcionários - a maioria deles mora em apartamentos compartilhados na região
central. O carinho se tornou recíproco. O dia de seu aniversário, 20 de março,
coincidiu com o do nascimento da filha de um dos haitianos, o carpinteiro Kedner
Jean Baptiste, de 25 anos, que decidiu batizar a rebenta com o nome de Cássia.