Sem mão de obra, Santa Catarina importa haitianos
Concentração de frigoríficos e empresas da construção civil no oeste do Estado já atraiu mais de 900 haitianos que suprem a escassez de mão de obra na região
Mariana Zylberkan, de Chapecó
Milio Louicinol e Olson Pierre deixaram o Haiti para tentar nova vida no Brasil - Mariana Pollara Zylberkan
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O fluxo imigratório começa em uma longa jornada no sul do Acre, precisamente na cidade de Brasileia, na fronteira com a Bolívia, onde fica o abrigo montado pelo governo estadual para receber os haitianos. Segundo o Ministério Público Federal, o galpão com 4.500 m² e capacidade para 400 pessoas abriga atualmente 1.244. No ano passado, o posto da Policia Federal em Epitaciolândia, cidade vizinha a Brasileia, registrou a entrada de 10.110 haitianos – 74% do total (13.669) de haitianos que cruzou a fronteira para o Brasil.
“Eles são absorvidos pelos setores da construção civil, frigoríficos, limpeza urbana e linhas de produção industrial em postos que os brasileiros não querem mais ocupar”, diz Paulo Sérgio de Almeida, presidente do Conselho Nacional de Imigração do Ministério do Trabalho.
Desde 2010, ano da tragédia que arruinou o país caribenho, o Brasil emitiu 12.352 carteiras de trabalho para haitianos. Desse total, 5.670 estão registrados e trabalhando atualmente – mais da metade na região Sul. Polo da agroindústria, o oeste catarinense tornou-se um dos principais destinos. A economia catarinense tem crescido nos últimos anos alavancada pela crescente exportação de alimentos para China e Japão.
Semanalmente, em média três empresas enviam representantes para recrutar haitianos em Brasileia. O perfil ideal é o de homens que deixaram a família no Haiti. A maioria das empresas oferece moradia e alimentação nos três primeiros meses e transporte do Acre para Santa Catarina em um ônibus. Segundo empresários da região, o custo de 2.000 reais por haitiano compensa pela escassez de mão de obra para trabalhar em frigoríficos e a economia com a automação da produção. Na linha de desossa de coxa e sobrecoxa de frango, por exemplo, uma máquina capaz de fazer o trabalho de até seis operários custa cerca de 1 milhão de reais e o investimento leva dez anos para ser revertido em lucro. “Temos também o crescimento da exportação para o mercado japonês, que exige perfeição dos cortes de carne, o que só pode ser feito com as mãos”, diz Neivor Canton, vice-presidente da Aurora, que emprega 390 haitianos.
A necessidade de sobrevivência e o compromisso de sustentar a família à distância fazem os haitianos tolerar mais as condições de trabalho nos frigoríficos. A atividade é a mais perigosa no Estado de Santa Catarina, segundo o Anuário de Acidentes de Trabalho elaborado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) – foram 2.381 acidentes em 2011. No Brasil, no mesmo período, foram contabilizados 19.453 acidentes no setor. O abate de suínos e aves registra altíssimos índices de desenvolvimento de transtornos de humor, como depressão. “A prova mais evidente da precarização das condições de trabalho é a contratação de imigrantes, indígenas, presos do regime semiaberto e pessoas que chegam a residir de 200 a 300 quilômetros do local de trabalho. O resultado é uma verdadeira epidemia de doenças ocupacionais”, diz o procurador Sandro Eduardo Sardá, do Ministério Público do Trabalho de Santa Catarina.
Rota percorrida por haitianos até chegar ao sul do Brasil
A falta de trabalho até na República Dominicana, país vizinho e mais próspero por causa do turismo, fez o haitiano Smith Rivette, de 32 anos, deixar o emprego de recepcionista de hotel, que lhe rendia salário de 1.000 dólares na alta temporada, para trabalhar na linha de produção de um frigorífico em Chapecó, com salário de 1.120 reais. “Vim atrás de boas oportunidades proporcionadas pela Copa do Mundo no Brasil, mas me iludi”, afirma. A desilusão no trabalho, porém, foi compensada pela sorte no amor: no frigorífico, ele conheceu a noiva, a catarinense Crisiane Cheneiedr, de 34 anos. O casal planeja se casar no primeiro semestre deste ano e está poupando dinheiro para trazer o pai de Rivette ao Brasil para a festa – o destino da lua de mel será Natal (RN).
A formação de famílias de haitianos em solo brasileiro se torna mais recorrente à medida em que os primeiros imigrantes conseguem deixar os dormitórios montados pelas empresas, que chegam a abrigar até 55 homens, e montar seus próprios lares. O casal Renise Petimey, de 21 anos, e Ginior Andre, de 29 anos, namoravam quando deixaram o Haiti, onde Andre trabalhava como recepcionista e sonhava com uma vida melhor no ramo da construção civil no Equador. Após oito meses, ele seguiu a rota já percorrida por 15.000 haitianos desde 2010 até Brasileia (AC). Após um mês de espera pela emissão da carteira de trabalho no Acre, chegou a Chapecó como funcionário de um empresário que foi ao Estado procurar trabalhadores para sua fábrica de piscinas. A fibra em pó tóxica inalada por Andre o fazia vomitar sangue e, por isso, deixou o emprego para trabalhar no frigorífico Aurora. No fim do ano, o casal oficializou a união em cerimônia custeada pela empresa. “O Brasil é bom para nós, eu só não gostei do chimarrão, é muito amargo”, diz Renise.
Primeira geração - Famílias de haitianos não apenas se formam como também crescem no oeste catarinense. O pequeno Natan, de 9 meses, é um dos primeiros descendentes de haitianos chapecoense. A mãe, Philomise Saint-Fleur, de 37 anos, veio para o Brasil há dois anos em busca de uma vida melhor para as duas filhas que deixou no Haiti. “Depois do terremoto, veio o cólera que deixou tudo pior. O que ia ser das minhas filhas? Precisei dar um jeito.”
Philomise fez a travessia que passa pela República Dominicana, Equador, Peru e Bolívia até chegar ao Acre, onde foi recrutada para trabalhar em uma empresa de tratamento de afluentes em Chapecó. Antes, passou oito meses no Equador trabalhando em uma fazenda de bananas, com remuneração de dez dólares por dia. Juntou dinheiro e continuou a viagem até o Brasil. Neste mês, ela recebeu a irmã na casa alugada pelo patrão, onde mora com Natan. “Agora, meu sonho é trazer a minha caçula e poder pagar a faculdade da mais velha.”
O caso de Philomise, que hoje vive em uma casa custeada pelo empregador, não é o único. Gustave Michel, de 44 anos, tornou-se o braço direito de um empresário de Chapecó e ganha 1.500 reais como chefe de obras. Há um ano, ele trouxe a mulher, Velouse Dominique, de 30 anos, que engravidou no Brasil. Ao chegar a Chapecó, Velouse tentou dar continuidade ao trabalho de cabeleireira que tinha no Haiti, mas não deu certo. Agora, arrumou emprego no abate de peru e reclama de dores no corpo por causa do grande esforço físico. O casal vive em uma casa alugada pelo patrão de Michel. “Não tem jeito, ouço a história deles e não tem como não se envolver. Ajudo no que posso”, diz o empresário Erico Tormen.