sábado, 23 de abril de 2016

Sorocaga e Jundiaí - SP = Abril de 2016

05/04/2016 08h49 - Atualizado em 05/04/2016 16h53

'Quis ver se o Brasil era mesmo um país de todos', diz refugiado haitiano

Após dois anos no Brasil, refugiado diz ter 'se encontrado' no interior de SP.
Carlo Louis decidiu deixar o Haiti após tremor que matou 300 mil em 2010.

Amanda Campos Do G1 Sorocaba e Jundiaí






Cada vez que ouve o trecho "Você não sabe o quanto caminhei para chegar até aqui" da música "A Estrada", do Cidade Negra, o haitiano Carlo Pierre Louis, de 27 anos, acredita que a banda brasileira canta sua história. Nascido em Miragoâne, a 100 quilômetros de Porto Príncipe, capital do Haiti, Louis passou por vários países, como República Dominicana, Colômbia e Peru, antes de desembarcar no Brasil, em 2012. Depois de passar por vários estados, ele afirma que  encontrou em Sorocaba, no interior de São Paulo, o clima certo para sua nova casa.  (Veja o vídeo acima)
Em entrevista ao G1, Louis conta que seu plano era ir até a Guiana Francesa pela compatibilidade da língua e que o Brasil era apenas parte do caminho. "Mas lembro que, assim que cheguei no Amazonas, li com dificuldade uma placa em português que dizia: 'Brasil, um país de todos'. Quis ver se o Brasil era mesmo um país de todos. Resolvi testar", diz ele.
Ao desembarcar em Manaus (AM), Louis foi levado, junto a outros cinco haitianos, a um abrigo. Depois de pedir asilo como refugiado, ele ficou sabendo por um padre que uma empresa mineira recrutava trabalhadores para atuar no ramo do conserto de peças em um parque de diversões.
Carlo durante aula em laboratório da universidade  (Foto: Arquivo Pessoal/Carlo Pierre-Louis)Carlo durante aula em laboratório da universidade
(Foto: Arquivo Pessoal/Carlo Pierre-Louis)
Ele aceitou a oferta e seguiu para Silvianópolis, onde trabalhava durante o dia e estudava português sozinho a noite por meio de vídeos. Seis meses depois - e já familiarizado com o idioma - ele viajou a trabalho para Votorantim (SP), onde leu um anúncio sobre um programa universitário que mudaria novamente sua vida. 
"Era uma universidade que oferecia um programa de bolsa de estudo para custear cursos universitários. Conversei com uma representante da faculdade, que me ajudou a ingressar", afirma.
O haitiano com a namorada, Aline (Foto: Arquivo Pessoal/Carlo Pierre-Louis)O haitiano com a namorada, Aline
(Foto: Arquivo Pessoal/Carlo Pierre-Louis)
Amor e engenharia em Sorocaba
Louis entrou no curso de engenharia mecânica, largou o emprego na empresa mineira e se mudou de vez para o interior de São Paulo.
Nessa mesma época, ele achou um motivo a mais para permanecer na cidade: se apaixonou pela atual companheira, a sorocabana Aline.
"Havia perdido o ônibus para ir para Minas Gerais e decidi passar no shopping antes de ir para casa. Lá, nas escadas rolantes, vi a Aline e me encantei. Foi o destino", conta.
Após o encontro inesperado, o haitiano foi atrás da brasileira. Ambos jantaram, trocaram telefones e poucas semanas após o primeiro encontro, começaram a namorar. Um ano após iniciarem o relacionamento, os dois decidiram morar juntos na casa onde Aline já vivia, em um bairro sorocabano.
Pessoas caminham em uma das principais ruas comerciais durante um protesto contra o governo em Porto Príncipe, no Haiti (Foto: Andres Martinez Casares/Reuters)Uma das principais ruas comerciais em Porto Príncipe, no Haiti (Foto: Andres Martinez Casares/Reuters)
Saída do Haiti 

O jovem não tinha planos de deixar seu país até janeiro de 2010, quando um terremoto de magnitude 7.0 deixou pelo menos 300 mil mortos e cerca de 1,5 milhão de desabrigados no Haiti.  Na época com 22 anos, Louis lembra como se fosse hoje o que fazia no dia do abalo. Ele estava na casa de um de seus dez irmãos cuidando das sobrinhas quando sentiu o tremor, que durou poucos segundos.
Terremoto de 2010 fez do Haiti o país com mais mortos em desastres nos últimos 20 anos; mais de 230 mil pessoas morreram no país nesse período (Foto: AFP/arquivo)Terremoto  fez do Haiti o país com mais mortos
em desastres nos últimos 20 anos (Foto: AFP)

 
"As meninas [sobrinhas] se agarraram às minhas pernas e eu corri para a varanda. Quando saí na calçada e olhei ao meu redor, não reconhecia mais o lugar onde morava. Só havia poeira e ruínas. Fui ajudar meus vizinhos. Pedi a Deus para nunca mais ver o que vi naquele dia", lembra.
Entre os destroços, o haitiano viu amigos feridos e corpos de vizinhos e colegas de faculdade com quem ele conivia diariamente. Os meses que se seguiram à tragédia, somados à demora na reconstrução do país – em muito devido aos desvios de verbas arrecadadas internacionalmente para ajudar as vítimas do desastre - só aumentaram seu desejo de deixar Porto Príncipe. 

Louis, então estudante de Direito em uma universidade federal haitiana, juntou dinheiro com trabalhos de estágio e viajou, dois anos depois, para a República Dominicana, onde uma de suas irmãs morava. O plano era seguir de lá até o Equador de avião, passar pelo Peru, Colômbia e Brasil de barco para, enfim, conseguir as passagens e desembarcar de vez na Guiana Francesa, mas não foi o que aconteceu.  "Acredito em destino. Sei que eu precisava ficar no Brasil para viver tudo o que tenho vivido. É uma força maior do que eu direcionando minha vida", afirma.

Quando saí na calçada e olhei ao meu redor, não reconhecia mais o lugar onde morava. Só havia poeira e ruínas. Pedi a Deus para nunca mais ver o que vi naquele dia"
Carlo Pierre Louis
 
Com uma fé que pode ser medida na mesma proporção do terremoto, Louis acredita que um dia vai voltar para o Haiti e ajudar os sete irmãos que ainda moram no país – dois deles acabaram vindo para o Brasil, mas moram longe de Sorocaba e um morreu antes do terremoto – e sua mãe, de quem ele afirma sentir "mais do que falta".

"Saudade não é a palavra certa [para definir o sentimento em relação a ausência da mãe]. Ainda não inventaram definição para isso", emociona-se.
Poliglota – ele fala, além do francês e do crioulo, línguas oficiais do Haiti, inglês, espanhol e português – o haitiano só sente muito por não ter melhores oportunidades profissionais no Brasil. Mas acredita que, com o diploma em mãos, vai conseguir se estabelecer no País, juntar dinheiro e voltar à terra natal. "Como diz a música do Cidade Negra, 'Com a fé no dia-a-dia encontro a solução'. Está nos meus planos. Não sei o que o destino ainda me reserva. Mas um dia quero voltar. Voltar para casa", afirma.
Carlo diz que a saudade da mãe é o que mais lhe incomoda no Brasil (Foto: Julia Garcia/G1)Carlo diz que a saudade da mãe é o que mais lhe incomoda no Brasil (Foto: Julia Garcia/G1)