Um lugar ao sol, no Sul
Novos imigrantes mudam o cenário do Rio Grande do Sul
Nova migração é um movimento recente, mas suficientemente forte para causar modificações econômicas, étnicas e culturais
16/08/2014 | 13h02
No Brasil, imigrantes podem ganhar até seis vezes mais Foto: Mauro Vieira / Agencia RBS
Um novo processo migratório, formado sobretudo por africanos e caribenhos, começa a vingar no Rio Grande do Sul – onde imigrantes italianos, alemães e poloneses se instalaram aos milhares no século 19. Muitas daquelas famílias europeias se fixaram em matagais despovoados na Serra, no Vale do Taquari e no Norte, dando início às principais colonizações do Estado.
As regiões cresceram, cidades como Caxias do Sul, Lajeado e Passo Fundo se tornaram pujantes polos industriais e hoje são ponta de lança do ciclo encabeçado por 11,5 mil estrangeiros negros – vindos não de zonas rurais, como seus antecessores, mas do meio urbano, e com pelo menos o Ensino Médio no currículo escolar.
Fogem da pobreza: no Brasil, podem ganhar até seis vezes mais do que no seu país de origem. O território gaúcho é um dos principais destinos de senegaleses e haitianos, principalmente o Interior, pois em Porto Alegre o custo de vida é mais alto, e a demanda por essa mão de obra, menor. Nas pequenas cidades, eles mudam o retrato da massa trabalhadora. Em Encantado, fundada por italianos, os migrantes negros já representam 2% da população – e 30% dos funcionários de um frigorífico da Dália Alimentos.
O sonho de todos é o mesmo dos colonos que chegaram há quase 200 anos: conseguir um lugar ao sol. Produzir. Vencer no Brasil.
Leia as últimas notícias de Zero Hora
François Petit Compere, 27 anos, já se considera um vencedor. Saiu do Haiti de avião há três nos e cinco meses, rumo a Manaus. Passou horrores na jornada, dormiu ao relento, migrou para Bento Gonçalves, conseguiu emprego e hoje se diz “rico” para os padrões de seu país. Recebe R$ 1,2 mil de salário na metalúrgica Zen e, por trabalhar com polimento, mais 40% de insalubridade. Gasta R$ 300 com aluguel, almoça no bandejão da empresa e a maior parte do dinheiro restante manda para Porto Príncipe, onde sustenta o filho pequeno e a ex-mulher.
— A cada dois meses recebo, praticamente, o que levava um ano para conseguir no Haiti, como cabeleireiro — comemora François, que já trouxe a nova mulher, haitiana, para morar na Serra.
François ganha seis vezes mais do que recebia no Haiti
FOTO: DIEGO VARA
Alcançar o status de haitianos como François é o anseio dos ganeses, que começam a chegar em caravanas ao Brasil. Vincent Iaboa , 24 anos, partiu no início de julho de Kumane, no interior de Gana, onde atuava como vendedor ambulante. Juntou dinheiro seu e de um irmão para pagar a viagem, via Marrocos, até São Paulo. Pernoitou na rodoviária paulistana durante 15 dias. Quatro amigos que vieram com ele não aguentaram o barulho dos ônibus e desistiram, voltando. Iaboa era universitário, estudante de Administração de Empresas, mas aqui está disposto a fazer qualquer coisa para sobreviver. Dorme num colchonete dentro do Seminário Nossa Senhora Aparecida, em Caxias do Sul, alimentado pela caridade alheia.
ZH visitou as principais cidades gaúchas onde se concentram os novos imigrantes: Caxias, Bento Gonçalves, Lajeado, Encantado, Marau, Passo Fundo, Erechim e Gravataí. Autores do livro O Novo Rosto das Imigrações no Brasil: O Caso dos Haitianos no RS (a ser lançado em setembro), o pesquisador Jurandir Zamberlam e o padre João Marcos Cimadon, coordenador de Mobilidade Humana da Regional Sul da CNBB, estimam que 11,5 mil africanos, caribenhos e asiáticos se fixaram no Estado.
Porto Alegre é só ponto de passagem, diz Zamberlam, por conta de três fatores: o custo de vida, puxado pelo aluguel, é muito alto; estão no Interior as empresas de abate de animais e construção civil que mais precisam de mão de obra; e, lá, eles não são “invisíveis” como na Capital.
Os haitianos, dominicanos, senegaleses, ganeses, gambianos e bengaleses (habitantes de Bangladesh) e indianos que vieram para cá são de uma certa classe média urbana. Muitos têm Ensino Médio, Superior incompleto ou mesmo completo. Mulheres, como a senegalesa Adama Sall , 35 anos, funcionária do frigorífico Aurora, de Erechim.
Parte significativa é poliglota. No caso do Haiti, há pesquisadores que já classificam o fenômeno como uma “fuga de cérebros” do país. Nesse ponto, se diferenciam dos alemães e italianos vindos no século 19, na maioria agricultores com baixa instrução. Somente em grupos mais recentes vieram haitianos de menor escolaridade e mais pobres, ligados ao êxodo rural.
— As imigrações do século 19 foram fomentadas pelos governos. Havia uma política de trazer esses europeus para cumprir três objetivos básicos: povoar o Sul do Brasil, produzir alimentos em pequenas propriedades de terra e, em menor escala, promover um branqueamento da população em função da escravidão — diz o historiador René Gertz, professor da PUCRS.
A maioria dos novos imigrantes vem por conta própria, ingressando de forma ilegal. Depois fazem o pedido de refúgio, instrumento legal para um estrangeiro permanecer no Brasil, alegando perseguições políticas (caso de Bangladesh e de Gâmbia) ou questões
humanitárias (caso do Haiti, empobrecido mesmo antes do terremoto que o devastou, em janeiro de 2010). Mas o maior motivo das migrações é econômico, sobretudo em relação a Gana, Senegal e República Dominicana: seus habitantes querem é fugir da falta de trabalho e de dinheiro.
Após a solicitação, o migrante ganha direito de tirar a carteira de trabalho e, assim, ficar temporariamente no país. Em 2013, o número de pedidos quadruplicou, de 4,2 mil para 17,9 mil.
— Eu não chamaria isso de nova onda migratória. Onda pressupõe que, em algum momento, vai acabar. Diria que é um fluxo migratório que passa a incluir o Brasil – pontua Gabriela Mezzanotti, coordenadora do curso de Relações Internacionais da Unisinos.
— Esses fluxos sempre aconteceram, mas o Brasil era exportador, e não destino. Os brasileiros iam aos EUA. Agora estamos fazendo parte desses países que têm algo a oferecer aos migrantes.
Enquanto América do Norte e Europa, premiadas por altas taxas de desemprego, fecham suas fronteiras, o Brasil vem se tornando referência internacional na acolhida. Não existe um programa oficial de incentivo do governo, mas a permanência é facilitada porque o mercado tem interesse na mão de obra.
— Há uma flexibilização da justificativa para o refúgio — diz diz Mariana Dalana Corbellini, subcoordenadora do curso de Relações Internacionais da Universidade de Santa Cruz do Sul.
— O Brasil considera um dever estabelecer cooperação em termos diplomáticos, fazendo intercâmbio com países em desenvolvimento. São brasileiras algumas das grandes construtoras que atuam na África e América Central, por exemplo. No caso haitiano, o Brasil envia milhares de vacinas ao ano pela Fundação Oswaldo Cruz, oferece cursos pelo Senai e Senac e é líder da Missão de Paz da ONU naquele território, o que lhe confere ainda mais responsabilidade frente aos cidadãos.
Ao mesmo tempo em que dá atenção especial a investimentos no Caribe e na África, o Brasil, com a força de sua indústria, acaba se tornando atrativo para os estrangeiros. O pesquisador Zamberlam exemplifica:
— Hoje, o Brasil é o maior exportador de frango para o mundo muçulmano, com 1,8 bilhão de habitantes atendidos por 300 empresas, a maioria delas da Região Sul. E os muçulmanos só admitem receber o produto se o abate for dentro do rito halal (nos preceitos da religião). Isso contribuiu para que milhares de africanos viessem trabalhar aqui.
Por vezes, as próprias empresas atraem a mão de obra estrangeira. A operação costuma se dar dentro da legalidade. Os refugiados têm carteira assinada e recebem as mesmas remunerações e benefícios dos brasileiros. Mas existem relatos de exploração. Alguns precisam quitar as dívidas contraídas com a viagem, o que os expõem a uma condição de fragilidade e análoga à escravidão: servidão por dívida, jornadas exaustivas, trabalho forçado e meios degradantes.
Em junho de 2013, em Cuiabá (MT), fiscais do Ministério Público do Trabalho (MPT)encontraram, em obras do programa Minha Casa Minha Vida, 21 haitianos alojados em situação precária. Em novembro do mesmo ano, em uma mineradora de Conceição do Mato Dentro (MG), havia, segundo definição do MPT, 100 haitianos “abrigados em local
similar a uma senzala”.
A primeira coisa que os estrangeiros fazem, após conseguir serviço, é mandar dinheiro aos que ficaram no seu país. É por isso que as remessas dos imigrantes superam as exportações haitianas, informa Letícia Mamed, doutoranda em Sociologia pela Universidade
Estadual de Campinas e professora da Universidade Federal do Acre, que integra um grupo de estudo de migrações. Mais de um terço da população adulta do Haiti recebe repasses monetários regulares de parentes radicados no Exterior. Foram US$ 1,5 bilhão em 2010 e US$ 2,1 bilhões em 2011.
A escassez de força de trabalho nas indústrias do interior gaúcho foi determinante para que empresários buscassem migrantes. Sem eles, as linhas de produção corriam o risco de parar, efeito do desinteresse da população local – focada em melhores empregos – em desempenhar atividades pesadas e menos rentáveis.
— Enfrentávamos uma carência enorme de mão de obra. Ficamos sabendo que a Massas Romena (em Gravataí) havia contratado haitianos. Fomos até Brasileia (no Acre) e trouxemos 50 haitianos em outubro de 2012 — conta Sandra Simonis Lucca, supervisora
de Pessoal da Dália Alimentos, em Encantado.
— Em fevereiro de 2013, voltamos a Brasileia e trouxemos mais 75 haitianos e alguns dominicanos. A partir daí, eles começaram a fazer contatos com outros compatriotas, que foram se candidatando a vagas de emprego. Atualmente, a empresa conta com 321 estrangeiros no frigorífico de Encantado — 30% do total de funcionários.
Após a chegada de milhares de estrangeiros, as vagas de emprego no interior diminuíram. O indiano Prem Abhilash Kapil, 55 anos, sentiu na pele o efeito. Ele veio ao Brasil por indicação de amigos, mas passou cinco meses desempregado. Depois de muita insistência, há pouco mais de 30 dias foi admitido em uma obra da construtora Zagonel, em Lajeado, onde vive em uma casa com outros três compatriotas. Está mais aliviado.
— O Brasil é bom para ganhar dinheiro. Estou feliz, meu único problema é a língua — diz Kapil, que tenta, muitas vezes em vão, se comunicar em inglês com a população do Vale do Taquari.
Com a desaceleração da indústria, a expectativa dos setores produtivos é de que, em breve, os estrangeiros estarão trabalhado nas colheitas da maçã, do fumo e da uva. São setores em que a mão de obra também é escassa. Sem as alternativas de colocação no emprego, o risco é criar uma disputa entre brasileiros e imigrantes, o que já mostrou efeitos nefastos em outros países, como as escaladas de xenofobia na Europa.
A nova migração é um movimento recente, mas suficientemente forte para causar modificações econômicas, étnicas e culturais no interior gaúcho. Em Encantado, os 400 estrangeiros representam cerca de 2% dos 20 mil habitantes locais. O município já comemora, em maio, o Dia da Bandeira Haitiana.
SENEGALESES REZAM A MAOMÉ EM FÁBRICA DE MÓVEIS
O ritual se repete cinco vezes ao dia na fábrica de móveis Saccaro, em Caxias. Um por vez, os senegaleses se dirigem ao banheiro e começam a lavar mãos e pés, nas pias. É a purificação antes do encontro com os ensinamentos do Profeta, como chamam Maomé. Então, em fila, se ajoelham sobre um tapete verde (que eles chamam de “a July”) ornamentado com a figura de uma mesquita e começam a rezar. Baixinho, em wolof, principal idioma dos países da África Ocidental.
— Alahu Akbar (Alá seja Louvado) — recitam, misturando o árabe ao dialeto senegalês.
Os murmúrios vão crescendo, deixando escorrer entre os dedos as contas da masbaha, equivalente muçulmano a um rosário católico. Pedem perdão pelos pecados, sob olhar curioso — e respeitoso — dos colegas brasileiros.
Mesmo os não fundamentalistas rezam cinco vezes ao dia. E respeitam o Ramadã, mês no qual só podem se alimentar à noite. No primeiro dia de agosto, quebraram o jejum com um farto “Almoço da Família”: carne de gado com batata e arroz, tudo apimentado.
Tirando a falta que sentem da família, os senegaleses são só elogios ao Brasil. Há recíproca.
— Eles têm muita facilidade para o trabalho, são honestos, disciplinados e não reclamam. Aprendem rápido, inclusive o idioma — diz a gerente de Relações Humanas da Saccaro, Ana Paula De Zorzi Caon.
São 15 na fábrica, todos homens: dois costureiros, um contador, um pintor e os demais,
marceneiros. Yakhia Ba, o líder, costuma usar vestes tribais ou o fez (gorro muçulmano). Alguns faziam, no Senegal, faculdade na área de exatas, mas agora têm de lutar para sobreviver. Ganham bem, para o padrão africano.
Modu Kurabu era comerciante em Dakar, com os pais. Nunca vendia o suficiente para sustentar mulher e dois filhos. Agora recebe R$ 1,3 mil, gasta R$ 500 e manda o resto para
casa. Vários nem conhecem os filhos: as mulheres estavam grávidas quando eles migraram
para o Brasil. Matam saudade via skype: todos têm computadores conectados à África.
Wakhou está há um ano e meio trabalhando na Saccaro
FOTO: DIEGO VARA
CARIBENHOS SÃO PROTEGIDOS POR IGREJA
Passaram-se quase 150 anos, mas a história, ainda que com distinções e peculiaridades, se repete. Em 1882, chegaram a Encantado, distante 149 quilômetros de Porto Alegre, os primeiros imigrantes italianos. Os descendentes desses viajantes formaram famílias, se
espalharam pelo território e, hoje, são absoluta maioria na cidade, com domínio sobre a cultura, a política e a economia.
A primeira criança gerada pelos italianos em Encantado foi Maria Bratti. Já falecida, ela é avó de Ivonete Teixeira, 61 anos, que hoje dedica sua vida ao Centro de Evangelização João Batista Scalabrini, ligado à Paróquia São Pedro, responsável por acolher as centenas de haitianos, dominicanos e senegaleses que desembarcaram na cidade nos últimos três anos, com frio, sem emprego ou lugar para dormir.
No vácuo do Estado, a Igreja assumiu a vanguarda solidária. A história da congregação scalabriniana, assim como a da família de Ivonete, traça um paralelo entre passado e presente. Era 1887 quando o padre italiano João Batista Scalabrini, preocupado com os viajantes do país que partiam rumo a outras regiões do mundo sem dinheiro, emprego e teto, além do desconhecimento da língua local, resolveu fundar a congregação com o objetivo de prestar caridade aos imigrantes.
No linguajar religioso, esse é o “carisma” da entidade. A congregação chegou a Encantado em abril de 1896, com a inauguração da Paróquia São Pedro, a primeira igreja scalabriniana do Rio Grande do Sul. E até hoje permanece atuante no município, sendo a única de Encantado. Depois de amparar os italianos, os scalabrinianos atravessaram mais
de cem anos de espera para acolher os imigrantes negros da África e da América Central. Um paralelo histórico que suscita temas como o racismo e a xenofobia.
— No início, tínhamos preocupação com a receptividade porque o italiano, em geral, é racista. Mas quase não tivemos problemas. Usamos o histórico a nosso favor. Dissemos que somos uma comunidade que nasceu da imigração. Por isso, entendemos que o mais justo
era receber bem esses novos imigrantes — conta Ivonete, voluntária scalabriniana.
Ivonete virou “mãe” dos imigrantes, a quem defendeu de discursos xenófobos
FOTO: DIEGO VARA
GANESES ACAMPAM EM SEMINÁRIO
Para quem ficou dormindo em banco duro de rodoviária, atordoado pelo ruído dos veículos, passando frio e fome, o seminário Nossa Senhora Aparecida, em Caxias do Sul, lembra um paraíso. O prédio em pedra, envolto por flores e pomares, abrigava até 10 dias atrás 90 ganeses que migraram para o Sul durante a Copa do Mundo, sem passagem de volta nem ingresso para os jogos. São parte de uma leva de 380 que escolheu a Serra gaúcha como ponto de partida na busca de emprego.
Permaneceram no Brasil 1.132 ganeses dos 2.529 que vieram com visto de turista para a Copa. Os primeiros conseguiram emprego rápido. Os retardatários aguardam ofertas. A rede de solidariedade católica garantiu a eles hospedagem em Caxias, comida e busca por colocação no mercado de trabalho. Daqueles 90, uns 20 são cristãos e os demais, muçulmanos. Passavam o dia atormentados pelo frio serrano, usando blusões recém-doados pelos fiéis da paróquia, sequiosos pelos raios de sol que iluminam o pátio interno do seminário. Lavavam as próprias roupas, cozinhavam basicamente, frango com arroz, muito condimentado — e comiam bergamotas nos intervalos. Dormiam junto ao refeitório, em colchões.
— São tão honestos e tímidos que tenho de insistir para que peguem frutas no pomar, façam
suco. Delimitamos um perímetro para usarem e eles não ultrapassam. E vêm com uma habilidade a mais em relação aos brasileiros: falam o idioma inglês — descreveu o administrador do seminário, padre Edmundo Marcon.
Em cadeiras dispostas em círculos ao ar livre, os ganeses recebiam lições de português de duas voluntárias, a estudante de Relações Internacionais Juliana Camelo e a publicitária Márcia Pessoa. As duas aproveitaram para praticar o inglês com os africanos.
— Também tomei conhecimento da culinária e da música deles. Muito legal, quero um intercâmbio para conhecer o país deles — entusiasmou-se Juliana.
Há semanas, emissários do frigorífico Nicolini, de Nova Araçá, vieram buscar 30 ganeses no seminário e perguntaram como fariam para levar os pertences dos migrantes. De imediato, todos embrulharam as roupas em sacolas e estavam prontos: possuem apenas algumas roupas, celulares e nada mais.
Mustafah Ibraim é um deles. Ex-jogador de futebol, sofreu um acidente de carro e ficou impossibilitado de jogar. Passou fome na procura por emprego em Gana. Decidiu migrar. Com ajuda dos pais, juntou dinheiro, voou até o Marrocos e veio parar em Caxias, viajando de cidade em cidade, acampando. Não tem dúvidas de que o Brasil “é o melhor país do mundo”.
As regiões cresceram, cidades como Caxias do Sul, Lajeado e Passo Fundo se tornaram pujantes polos industriais e hoje são ponta de lança do ciclo encabeçado por 11,5 mil estrangeiros negros – vindos não de zonas rurais, como seus antecessores, mas do meio urbano, e com pelo menos o Ensino Médio no currículo escolar.
Fogem da pobreza: no Brasil, podem ganhar até seis vezes mais do que no seu país de origem. O território gaúcho é um dos principais destinos de senegaleses e haitianos, principalmente o Interior, pois em Porto Alegre o custo de vida é mais alto, e a demanda por essa mão de obra, menor. Nas pequenas cidades, eles mudam o retrato da massa trabalhadora. Em Encantado, fundada por italianos, os migrantes negros já representam 2% da população – e 30% dos funcionários de um frigorífico da Dália Alimentos.
O sonho de todos é o mesmo dos colonos que chegaram há quase 200 anos: conseguir um lugar ao sol. Produzir. Vencer no Brasil.
Leia as últimas notícias de Zero Hora
François Petit Compere, 27 anos, já se considera um vencedor. Saiu do Haiti de avião há três nos e cinco meses, rumo a Manaus. Passou horrores na jornada, dormiu ao relento, migrou para Bento Gonçalves, conseguiu emprego e hoje se diz “rico” para os padrões de seu país. Recebe R$ 1,2 mil de salário na metalúrgica Zen e, por trabalhar com polimento, mais 40% de insalubridade. Gasta R$ 300 com aluguel, almoça no bandejão da empresa e a maior parte do dinheiro restante manda para Porto Príncipe, onde sustenta o filho pequeno e a ex-mulher.
— A cada dois meses recebo, praticamente, o que levava um ano para conseguir no Haiti, como cabeleireiro — comemora François, que já trouxe a nova mulher, haitiana, para morar na Serra.
François ganha seis vezes mais do que recebia no Haiti
FOTO: DIEGO VARA
Alcançar o status de haitianos como François é o anseio dos ganeses, que começam a chegar em caravanas ao Brasil. Vincent Iaboa , 24 anos, partiu no início de julho de Kumane, no interior de Gana, onde atuava como vendedor ambulante. Juntou dinheiro seu e de um irmão para pagar a viagem, via Marrocos, até São Paulo. Pernoitou na rodoviária paulistana durante 15 dias. Quatro amigos que vieram com ele não aguentaram o barulho dos ônibus e desistiram, voltando. Iaboa era universitário, estudante de Administração de Empresas, mas aqui está disposto a fazer qualquer coisa para sobreviver. Dorme num colchonete dentro do Seminário Nossa Senhora Aparecida, em Caxias do Sul, alimentado pela caridade alheia.
ZH visitou as principais cidades gaúchas onde se concentram os novos imigrantes: Caxias, Bento Gonçalves, Lajeado, Encantado, Marau, Passo Fundo, Erechim e Gravataí. Autores do livro O Novo Rosto das Imigrações no Brasil: O Caso dos Haitianos no RS (a ser lançado em setembro), o pesquisador Jurandir Zamberlam e o padre João Marcos Cimadon, coordenador de Mobilidade Humana da Regional Sul da CNBB, estimam que 11,5 mil africanos, caribenhos e asiáticos se fixaram no Estado.
Porto Alegre é só ponto de passagem, diz Zamberlam, por conta de três fatores: o custo de vida, puxado pelo aluguel, é muito alto; estão no Interior as empresas de abate de animais e construção civil que mais precisam de mão de obra; e, lá, eles não são “invisíveis” como na Capital.
Os haitianos, dominicanos, senegaleses, ganeses, gambianos e bengaleses (habitantes de Bangladesh) e indianos que vieram para cá são de uma certa classe média urbana. Muitos têm Ensino Médio, Superior incompleto ou mesmo completo. Mulheres, como a senegalesa Adama Sall , 35 anos, funcionária do frigorífico Aurora, de Erechim.
Parte significativa é poliglota. No caso do Haiti, há pesquisadores que já classificam o fenômeno como uma “fuga de cérebros” do país. Nesse ponto, se diferenciam dos alemães e italianos vindos no século 19, na maioria agricultores com baixa instrução. Somente em grupos mais recentes vieram haitianos de menor escolaridade e mais pobres, ligados ao êxodo rural.
— As imigrações do século 19 foram fomentadas pelos governos. Havia uma política de trazer esses europeus para cumprir três objetivos básicos: povoar o Sul do Brasil, produzir alimentos em pequenas propriedades de terra e, em menor escala, promover um branqueamento da população em função da escravidão — diz o historiador René Gertz, professor da PUCRS.
A maioria dos novos imigrantes vem por conta própria, ingressando de forma ilegal. Depois fazem o pedido de refúgio, instrumento legal para um estrangeiro permanecer no Brasil, alegando perseguições políticas (caso de Bangladesh e de Gâmbia) ou questões
humanitárias (caso do Haiti, empobrecido mesmo antes do terremoto que o devastou, em janeiro de 2010). Mas o maior motivo das migrações é econômico, sobretudo em relação a Gana, Senegal e República Dominicana: seus habitantes querem é fugir da falta de trabalho e de dinheiro.
Após a solicitação, o migrante ganha direito de tirar a carteira de trabalho e, assim, ficar temporariamente no país. Em 2013, o número de pedidos quadruplicou, de 4,2 mil para 17,9 mil.
— Eu não chamaria isso de nova onda migratória. Onda pressupõe que, em algum momento, vai acabar. Diria que é um fluxo migratório que passa a incluir o Brasil – pontua Gabriela Mezzanotti, coordenadora do curso de Relações Internacionais da Unisinos.
— Esses fluxos sempre aconteceram, mas o Brasil era exportador, e não destino. Os brasileiros iam aos EUA. Agora estamos fazendo parte desses países que têm algo a oferecer aos migrantes.
Enquanto América do Norte e Europa, premiadas por altas taxas de desemprego, fecham suas fronteiras, o Brasil vem se tornando referência internacional na acolhida. Não existe um programa oficial de incentivo do governo, mas a permanência é facilitada porque o mercado tem interesse na mão de obra.
— Há uma flexibilização da justificativa para o refúgio — diz diz Mariana Dalana Corbellini, subcoordenadora do curso de Relações Internacionais da Universidade de Santa Cruz do Sul.
— O Brasil considera um dever estabelecer cooperação em termos diplomáticos, fazendo intercâmbio com países em desenvolvimento. São brasileiras algumas das grandes construtoras que atuam na África e América Central, por exemplo. No caso haitiano, o Brasil envia milhares de vacinas ao ano pela Fundação Oswaldo Cruz, oferece cursos pelo Senai e Senac e é líder da Missão de Paz da ONU naquele território, o que lhe confere ainda mais responsabilidade frente aos cidadãos.
Ao mesmo tempo em que dá atenção especial a investimentos no Caribe e na África, o Brasil, com a força de sua indústria, acaba se tornando atrativo para os estrangeiros. O pesquisador Zamberlam exemplifica:
— Hoje, o Brasil é o maior exportador de frango para o mundo muçulmano, com 1,8 bilhão de habitantes atendidos por 300 empresas, a maioria delas da Região Sul. E os muçulmanos só admitem receber o produto se o abate for dentro do rito halal (nos preceitos da religião). Isso contribuiu para que milhares de africanos viessem trabalhar aqui.
Por vezes, as próprias empresas atraem a mão de obra estrangeira. A operação costuma se dar dentro da legalidade. Os refugiados têm carteira assinada e recebem as mesmas remunerações e benefícios dos brasileiros. Mas existem relatos de exploração. Alguns precisam quitar as dívidas contraídas com a viagem, o que os expõem a uma condição de fragilidade e análoga à escravidão: servidão por dívida, jornadas exaustivas, trabalho forçado e meios degradantes.
Em junho de 2013, em Cuiabá (MT), fiscais do Ministério Público do Trabalho (MPT)encontraram, em obras do programa Minha Casa Minha Vida, 21 haitianos alojados em situação precária. Em novembro do mesmo ano, em uma mineradora de Conceição do Mato Dentro (MG), havia, segundo definição do MPT, 100 haitianos “abrigados em local
similar a uma senzala”.
A primeira coisa que os estrangeiros fazem, após conseguir serviço, é mandar dinheiro aos que ficaram no seu país. É por isso que as remessas dos imigrantes superam as exportações haitianas, informa Letícia Mamed, doutoranda em Sociologia pela Universidade
Estadual de Campinas e professora da Universidade Federal do Acre, que integra um grupo de estudo de migrações. Mais de um terço da população adulta do Haiti recebe repasses monetários regulares de parentes radicados no Exterior. Foram US$ 1,5 bilhão em 2010 e US$ 2,1 bilhões em 2011.
A escassez de força de trabalho nas indústrias do interior gaúcho foi determinante para que empresários buscassem migrantes. Sem eles, as linhas de produção corriam o risco de parar, efeito do desinteresse da população local – focada em melhores empregos – em desempenhar atividades pesadas e menos rentáveis.
— Enfrentávamos uma carência enorme de mão de obra. Ficamos sabendo que a Massas Romena (em Gravataí) havia contratado haitianos. Fomos até Brasileia (no Acre) e trouxemos 50 haitianos em outubro de 2012 — conta Sandra Simonis Lucca, supervisora
de Pessoal da Dália Alimentos, em Encantado.
— Em fevereiro de 2013, voltamos a Brasileia e trouxemos mais 75 haitianos e alguns dominicanos. A partir daí, eles começaram a fazer contatos com outros compatriotas, que foram se candidatando a vagas de emprego. Atualmente, a empresa conta com 321 estrangeiros no frigorífico de Encantado — 30% do total de funcionários.
Após a chegada de milhares de estrangeiros, as vagas de emprego no interior diminuíram. O indiano Prem Abhilash Kapil, 55 anos, sentiu na pele o efeito. Ele veio ao Brasil por indicação de amigos, mas passou cinco meses desempregado. Depois de muita insistência, há pouco mais de 30 dias foi admitido em uma obra da construtora Zagonel, em Lajeado, onde vive em uma casa com outros três compatriotas. Está mais aliviado.
— O Brasil é bom para ganhar dinheiro. Estou feliz, meu único problema é a língua — diz Kapil, que tenta, muitas vezes em vão, se comunicar em inglês com a população do Vale do Taquari.
Com a desaceleração da indústria, a expectativa dos setores produtivos é de que, em breve, os estrangeiros estarão trabalhado nas colheitas da maçã, do fumo e da uva. São setores em que a mão de obra também é escassa. Sem as alternativas de colocação no emprego, o risco é criar uma disputa entre brasileiros e imigrantes, o que já mostrou efeitos nefastos em outros países, como as escaladas de xenofobia na Europa.
A nova migração é um movimento recente, mas suficientemente forte para causar modificações econômicas, étnicas e culturais no interior gaúcho. Em Encantado, os 400 estrangeiros representam cerca de 2% dos 20 mil habitantes locais. O município já comemora, em maio, o Dia da Bandeira Haitiana.
SENEGALESES REZAM A MAOMÉ EM FÁBRICA DE MÓVEIS
O ritual se repete cinco vezes ao dia na fábrica de móveis Saccaro, em Caxias. Um por vez, os senegaleses se dirigem ao banheiro e começam a lavar mãos e pés, nas pias. É a purificação antes do encontro com os ensinamentos do Profeta, como chamam Maomé. Então, em fila, se ajoelham sobre um tapete verde (que eles chamam de “a July”) ornamentado com a figura de uma mesquita e começam a rezar. Baixinho, em wolof, principal idioma dos países da África Ocidental.
— Alahu Akbar (Alá seja Louvado) — recitam, misturando o árabe ao dialeto senegalês.
Os murmúrios vão crescendo, deixando escorrer entre os dedos as contas da masbaha, equivalente muçulmano a um rosário católico. Pedem perdão pelos pecados, sob olhar curioso — e respeitoso — dos colegas brasileiros.
Mesmo os não fundamentalistas rezam cinco vezes ao dia. E respeitam o Ramadã, mês no qual só podem se alimentar à noite. No primeiro dia de agosto, quebraram o jejum com um farto “Almoço da Família”: carne de gado com batata e arroz, tudo apimentado.
Tirando a falta que sentem da família, os senegaleses são só elogios ao Brasil. Há recíproca.
— Eles têm muita facilidade para o trabalho, são honestos, disciplinados e não reclamam. Aprendem rápido, inclusive o idioma — diz a gerente de Relações Humanas da Saccaro, Ana Paula De Zorzi Caon.
São 15 na fábrica, todos homens: dois costureiros, um contador, um pintor e os demais,
marceneiros. Yakhia Ba, o líder, costuma usar vestes tribais ou o fez (gorro muçulmano). Alguns faziam, no Senegal, faculdade na área de exatas, mas agora têm de lutar para sobreviver. Ganham bem, para o padrão africano.
Modu Kurabu era comerciante em Dakar, com os pais. Nunca vendia o suficiente para sustentar mulher e dois filhos. Agora recebe R$ 1,3 mil, gasta R$ 500 e manda o resto para
casa. Vários nem conhecem os filhos: as mulheres estavam grávidas quando eles migraram
para o Brasil. Matam saudade via skype: todos têm computadores conectados à África.
Wakhou está há um ano e meio trabalhando na Saccaro
FOTO: DIEGO VARA
CARIBENHOS SÃO PROTEGIDOS POR IGREJA
Passaram-se quase 150 anos, mas a história, ainda que com distinções e peculiaridades, se repete. Em 1882, chegaram a Encantado, distante 149 quilômetros de Porto Alegre, os primeiros imigrantes italianos. Os descendentes desses viajantes formaram famílias, se
espalharam pelo território e, hoje, são absoluta maioria na cidade, com domínio sobre a cultura, a política e a economia.
A primeira criança gerada pelos italianos em Encantado foi Maria Bratti. Já falecida, ela é avó de Ivonete Teixeira, 61 anos, que hoje dedica sua vida ao Centro de Evangelização João Batista Scalabrini, ligado à Paróquia São Pedro, responsável por acolher as centenas de haitianos, dominicanos e senegaleses que desembarcaram na cidade nos últimos três anos, com frio, sem emprego ou lugar para dormir.
No vácuo do Estado, a Igreja assumiu a vanguarda solidária. A história da congregação scalabriniana, assim como a da família de Ivonete, traça um paralelo entre passado e presente. Era 1887 quando o padre italiano João Batista Scalabrini, preocupado com os viajantes do país que partiam rumo a outras regiões do mundo sem dinheiro, emprego e teto, além do desconhecimento da língua local, resolveu fundar a congregação com o objetivo de prestar caridade aos imigrantes.
No linguajar religioso, esse é o “carisma” da entidade. A congregação chegou a Encantado em abril de 1896, com a inauguração da Paróquia São Pedro, a primeira igreja scalabriniana do Rio Grande do Sul. E até hoje permanece atuante no município, sendo a única de Encantado. Depois de amparar os italianos, os scalabrinianos atravessaram mais
de cem anos de espera para acolher os imigrantes negros da África e da América Central. Um paralelo histórico que suscita temas como o racismo e a xenofobia.
— No início, tínhamos preocupação com a receptividade porque o italiano, em geral, é racista. Mas quase não tivemos problemas. Usamos o histórico a nosso favor. Dissemos que somos uma comunidade que nasceu da imigração. Por isso, entendemos que o mais justo
era receber bem esses novos imigrantes — conta Ivonete, voluntária scalabriniana.
Ivonete virou “mãe” dos imigrantes, a quem defendeu de discursos xenófobos
FOTO: DIEGO VARA
GANESES ACAMPAM EM SEMINÁRIO
Para quem ficou dormindo em banco duro de rodoviária, atordoado pelo ruído dos veículos, passando frio e fome, o seminário Nossa Senhora Aparecida, em Caxias do Sul, lembra um paraíso. O prédio em pedra, envolto por flores e pomares, abrigava até 10 dias atrás 90 ganeses que migraram para o Sul durante a Copa do Mundo, sem passagem de volta nem ingresso para os jogos. São parte de uma leva de 380 que escolheu a Serra gaúcha como ponto de partida na busca de emprego.
Permaneceram no Brasil 1.132 ganeses dos 2.529 que vieram com visto de turista para a Copa. Os primeiros conseguiram emprego rápido. Os retardatários aguardam ofertas. A rede de solidariedade católica garantiu a eles hospedagem em Caxias, comida e busca por colocação no mercado de trabalho. Daqueles 90, uns 20 são cristãos e os demais, muçulmanos. Passavam o dia atormentados pelo frio serrano, usando blusões recém-doados pelos fiéis da paróquia, sequiosos pelos raios de sol que iluminam o pátio interno do seminário. Lavavam as próprias roupas, cozinhavam basicamente, frango com arroz, muito condimentado — e comiam bergamotas nos intervalos. Dormiam junto ao refeitório, em colchões.
— São tão honestos e tímidos que tenho de insistir para que peguem frutas no pomar, façam
suco. Delimitamos um perímetro para usarem e eles não ultrapassam. E vêm com uma habilidade a mais em relação aos brasileiros: falam o idioma inglês — descreveu o administrador do seminário, padre Edmundo Marcon.
Em cadeiras dispostas em círculos ao ar livre, os ganeses recebiam lições de português de duas voluntárias, a estudante de Relações Internacionais Juliana Camelo e a publicitária Márcia Pessoa. As duas aproveitaram para praticar o inglês com os africanos.
— Também tomei conhecimento da culinária e da música deles. Muito legal, quero um intercâmbio para conhecer o país deles — entusiasmou-se Juliana.
Há semanas, emissários do frigorífico Nicolini, de Nova Araçá, vieram buscar 30 ganeses no seminário e perguntaram como fariam para levar os pertences dos migrantes. De imediato, todos embrulharam as roupas em sacolas e estavam prontos: possuem apenas algumas roupas, celulares e nada mais.
Mustafah Ibraim é um deles. Ex-jogador de futebol, sofreu um acidente de carro e ficou impossibilitado de jogar. Passou fome na procura por emprego em Gana. Decidiu migrar. Com ajuda dos pais, juntou dinheiro, voou até o Marrocos e veio parar em Caxias, viajando de cidade em cidade, acampando. Não tem dúvidas de que o Brasil “é o melhor país do mundo”.