sábado, 23 de agosto de 2014

Noticia 22-08-2014

Fiscalização resgata haitianos escravizados em oficina de costura em São Paulo


SRTE
Quatorze pessoas passavam fome e eram obrigadas a viver em condições degradantes. Resgate é o primeiro envolvendo haitianos no Estado de São Paulo
22/08/2014
Por Stefano Wrobleski

Da Repórter Brasil
Doze haitianos e dois bolivianos foram resgatados de condições análogas às de escravos em uma oficina têxtil na região central de São Paulo. O resgate ocorreu no início deste mês após fiscalização de auditores do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e uma procuradora do Ministério Público Trabalho (MPT). As vítimas trabalhavam no local há dois meses produzindo peças para a confecção As Marias, mas nunca receberam salários e passavam fome. O caso é inédito. Apesar de imigrantes haitianos já terem sido resgatados da escravidão no Brasil, até então, nenhum havia sido libertado nem no Estado de São Paulo, nem no setor têxtil.

Segundo a fiscalização, antes de serem aliciados, os haitianos estavam sendo abrigados pela pastoral Missão Paz, mantida pela paróquia Nossa Senhora da Paz para acolher migrantes de outros países que chegam a São Paulo. Além de alojar os migrantes, a pastoral promove palestras a empresários sobre a cultura e os direitos dos estrangeiros, onde os interessados em contratar os recém-chegados preenchem fichas com informações que são usadas para verificar a situação trabalhista das empresas na Justiça e monitorar as contratações.

De acordo com o padre Paolo Parise, que coordena a missão desde 2010, o interesse dos empresários pela Missão Paz diminui quando eles são informados de que os migrantes têm os mesmos direitos dos demais trabalhadores no Brasil. O padre diz que, de janeiro a julho deste ano, 587 empresas contrataram 1710 migrantes através da pastoral. O número de empresas, porém, equivale a apenas um terço do total de interessados que assistem à palestra inicial.

A dona da oficina onde as 14 vítimas de trabalho escravo foram resgatadas faz parte dos dois terços de empresários desistentes. “Em maio, ela e seu esposo vieram, participaram da palestra e, depois, sumiram sem contratar ninguém”, disse Paolo. Antes de ser aliciado, Daniel*, um dos haitianos, já tinha emprego fixo em um shopping da capital e retornava todas as semanas à pastoral para dar, voluntariamente, aulas de português aos colegas conterrâneos.

Daniel aprendera o idioma pela internet antes de vir para o Brasil e vem aprimorando seus conhecimentos desde 2012, quando chegou ao país pelo Acre. A maior parte dos seus colegas, no entanto, havia chegado fazia menos de um mês ao Brasil e o crioulo (junto com o francês, uma das línguas oficiais do país) era o único idioma que sabiam falar.

Ante a promessa de receber um salário menor, mas com benefícios como alimentação e alojamento garantidos pelo empregador, ele aceitou a oferta da dona da oficina: “O maior problema no Brasil são os custos de vida, como aluguel e outras coisas”, disse à reportagem. Daniel, então, deixou o emprego no shopping e chamou alguns colegas para quem dava aulas na Missão Paz. Para o trabalho, a dona da oficina havia dito a ele que não era necessário saber costurar: eles seriam contratados como aprendizes e teriam contato com o ofício trabalhando na confecção para As Marias. No Haiti, eles tinham ocupações diversas. Daniel era vendedor autônomo, enquanto outra das vítimas estudava para ser enfermeiro.

Condições degradantes
Na oficina, as vítimas começaram a trabalhar em junho. No local também ficavam os quartos onde os doze haitianos, um casal de bolivianos e seu filho de quatro anos dormiriam. Com colchões em mal estado no chão, mofo, infiltrações e péssimas condições de higiene, a auditora fiscal Elisabete Cristina Gallo Sasse, que participou da operação, disse à Repórter Brasil que os cômodos eram tão pequenos que “nós [a equipe] não conseguíamos nem ficar dentro deles”.
De segunda a sábado, submetidos a uma jornada que podia chegar a até 15 horas por dia, os bolivianos teriam a função de ensinar às demais vítimas a costurar. Assim, os haitianos tiveram suas carteiras de trabalho assinadas na função de “aprendiz de costureiro”. A fiscalização apurou que a maioria dos trabalhadores tinha mais do que a idade máxima, de 24 anos, para exercer a função de aprendiz e não havia qualquer instituição acompanhando o aprendizado. O artifício tinha a função de permitir o registro em carteira com salário de R$724, o mínimo brasileiro e inferior ao piso, de R$1017, da categoria dos costureiros para a região.

Fome
Apesar de baixo, o salário nunca veio. A alimentação, outra promessa inicial, era de baixa qualidade e não havia refeitório no local. Quando, quase dois meses depois do início do trabalho, as vítimas reclamaram que queriam ser pagas, receberam da dona da oficina um vale de R$100. Em contrapartida, deixaram de receber comida.

Ao chegar ao local, a fiscalização encontrou os trabalhadores almoçando pães franceses que eles mesmos haviam comprado. Os fiscais também descobriram uma cozinha de uso exclusivo da dona da oficina e em melhores condições do que a disponibilizada aos costureiros. Dentro dela, os alimentos eram escondidos no interior de um sofá. “O que mais me chocou foi ver a crueldade do ser humano de deixar trabalhadores passando fome, de ter o alimento e não fornecer, deixando-os em situação de penúria”, lamentou Elisabete.

Antes de deixar a oficina, a equipe interditou o imóvel e as máquinas de costura pelo “grave e iminente risco de incêndio”, conforme os fiscais escreveram no relatório da operação, por conta de instalações elétricas irregulares, da falta de extintores dentro do prazo de validade e da não existência de proteção das partes móveis das máquinas de costura.

A confecção As Marias foi responsabilizada pelas infrações aos direitos dos trabalhadores com base nasúmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST). A empresa pagou todas as verbas rescisórias e os salários atrasados dos funcionários e firmou Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho para fornecer cestas básicas e hospedagem às vítimas
.
À Repórter Brasil, a estilista e dona da empresa, Mirian Prado, disse que não tinha conhecimento das condições de trabalho na oficina e que só terceirizava o trabalho: “A gente estava na hora errada, no lugar errado e fazendo a coisa errada sem saber”, disse. Depois da autuação, Mirian informou que a empresa passou a fiscalizar outros fornecedores e que pretende deixar de terceirizar o serviço em breve para ter melhor controle sobre sua produção.

Já Daniel, que passara por outros empregos no Acre, Rio Grande do Sul e São Paulo antes de ser escravizado, disse pensar em voltar para seu país natal: “No Brasil tem muitos empregadores que falam para a gente [haitianos] que vão pagar uma coisa e, quando a gente chega lá, acabam pagando menos, não pagam hora extra… Muitos empresários pagam direito, mas eu tive muitos problemas”, explicou.

Em outra ação, adolescente grávida é resgatada
Também em São Paulo, uma equipe do MTE resgatou 17 bolivianos submetidos a trabalho escravo em outra oficina têxtil, produzindo para a empresa Seiki. Dentre as vítimas estava uma adolescente de 15 anos grávida de sete meses. As jornadas chegavam a 12 horas por dia e os documentos dos trabalhadores haviam sido retidos, o que caracterizou restrição de liberdade: “Todos os aspectos de suas vidas privadas eram controlados”, concluiu a fiscalização no relatório da operação.

Os alojamentos ficavam junto dos locais de trabalho. Além dos trabalhadores, quatro crianças de seis meses a sete anos de idade moravam no local, considerado em condições degradantes. Por mês as vítimas recebiam R$700 cada, um valor menor que o salário mínimo e de cerca de 40% do piso para a categoria. Os funcionários mais antigos trabalhavam no local desde novembro de 2013.

A terceirização foi considerada ilegal e a Seiki pagou todas as verbas rescisórias, responsabilizando-se solidariamente pelos trabalhadores, conforme determina a legislação vigente. Horácio Conde, advogado da empresa, disse à reportagem que a empresa desconhecia as infrações e não sabia do número total de contratados, já que somente três tinham carteira de trabalho assinada. Horácio
afirmou ainda que, após o flagrante, a Seiki deve “aprimorar determinadas práticas de fiscalização”.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Jornal Zero Hora - RS 17-08-2014

A viagem ao Brasil

Os novos imigrantes sob a ameaça dos coiotes

Traficantes de pessoas chegam a cobrar US$ 2 mil para trazer haitianos, que também sofrem extorsão de policiais e taxistas no Peru e na Bolívia. Rede de corrupção inclui venda de vistos e outros documentos falsificados

Atualizada em 18/08/2014 | 09h4818/08/2014 | 05h01
Os novos imigrantes sob a ameaça dos coiotes Diego Vara/Agencia RBS
"Por sorte, eu tinha dinheiro, mas muitos haitianos que ficam na mesma situação são obrigados a passar fome", diz Roldy Foto: Diego Vara / Agencia RBS
 
Falar com os novos migrantes radicados no Rio Grande do Sul (personagens de reportagem especial publicada na ZH deste domingo) também é colher testemunhos de um martírio. Quase todos penaram no caminho até o Brasil, sobretudo os que ingressaram pelo Acre, na fronteira com o Peru. São frequentes os relatos de extorsão por parte de coiotes – traficantes de seres humanos – e da polícia estrangeira, além de casos de estupro.

Wilkenson Samsom, 19 anos, vive com o pai em Encantado. Ambos trabalham em frigorífico da Dália Alimentos. Para realizar o sonho da vida melhor, o jovem teve de pagar US$ 300 a coiotes e policiais peruanos. Situação semelhante ocorreu com Roldy Julien, 25 anos, presidente da Associação Haitiana de Encantado. Ele fez a rota da maioria dos seus compatriotas: foi até Quito, no Equador, e lá tomou um ônibus que atravessou parte do país, ingressou no Peru e chegou até a fronteira do Brasil, entrando pelo Acre.

No Peru, com quatro amigos, foi extorquido duas vezes. Na primeira, o quarteto teve de pegar 500 sóis (moeda peruana) e mais US$ 300. Receberam um salvo-conduto. Dias depois, perto do Brasil, foram abordados novamente. Veio a notícia de que o papel que tinham em mãos já não valia mais. Dessa vez, Julien foi forçado a pagar sozinho a quantia de US$ 200. Seu passaporte ainda ficou apreendido por uma semana, tempo em que ele precisou se desdobrar com o dinheiro que lhe restava para garantir teto e comida.

— Não sei se tem ladrão no Peru. Mas parece que a polícia é pior — desabafa Julien, que, no Rio Grande do Sul, perdeu três dedos da mão direita em um acidente de trabalho.

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Os relatos se repetem desde 2010, quando explodiu a nova imigração para o Brasil. Em maio de 2011, 20 haitianos recorreram à Polícia Federal em Tabatinga (AM), denunciando um compatriota deles chamado Repert Julien, 28 anos, que teria descumprido promessa de hospedagem paga por eles. Em 5 de julho daquele ano, os federais prenderam Julien, que cobrava até US$ 2 mil para trazer haitianos do Peru ao Brasil. Foi o primeiro inquérito de uma série.

No Acre, foi preso em abril de 2013 o jogador de futebol haitiano Innocent Olibrice, quando tentava embarcar no aeroporto de Rio Branco um garoto de 13 anos, haitiano, para Macapá (AP). Innocent, que atuava num time acreano e foi solto cinco dias depois, responde a processo judicial por tráfico de pessoas e estelionato. De acordo com as investigações da PF, o atleta está envolvido numa rede de coiotes. Ele foi contratado pela família do menino para encaminhá-lo à Guiana Francesa ao custo de 500 euros (o equivalente a cerca de R$ 1,5 mil).

Innocent negou a acusação, mas é processado. A pena para o tráfico é de um a três anos de reclusão e expulsão do país. A socióloga Letícia Mamed entrevistou dezenas de migrantes no Acre e constatou: a fuga em razão da falta de trabalho, educação, saúde, habitação e segurança no seu país de origem impulsiona a migração. No Haiti, por exemplo, parece ter se estruturado um negócio com despachantes, falsificadores, aliciadores e coiotes no processo de agenciamento. Relatos também informam existir naquele país a venda de vistos e outros documentos falsificados, inclusive supostas facilidades que prometem acelerar a viagem. Algo que aumentou após o terremoto de 2010.

zh.doc: quem são os novos imigrantes do Rio Grande do Sul
Na viagem ao Brasil, os haitianos pagam entre US$ 2 mil e US$ 5 mil (valor semelhante ao cobrado de ganeses entrevistados por ZH em Criciúma e em Caxias do Sul). E são vítimas frequentes de extorsões praticadas por policiais e taxistas, sobretudo peruanos e bolivianos. Letícia estima que, de 2010 a 2014, os haitianos já teriam gasto cerca de R$ 6 bilhões em pagamentos à rede de tráfico e corrupção estruturada para chegar ao Acre.

E não só haitianos. Em torno de 16 diferentes nacionalidades já passaram pelo acampamento montado pelas autoridades acreanas na fronteira com o Peru. Todos mostram receio em falar sobre os contatos, a organização do percurso, os agentes contratados e a realização da viagem em si. E quando decidem falar sobre o assunto, geralmente as explicações são pactuadas pelo grupo antes da exposição ao interlocutor.


Empresas agilizam os vistos e arranjam emprego aos migrantes

A vigorosa migração de africanos e centro-americanos para o Brasil tem rendido lucros a dois tipos de empresas: as que se especializam em legalizar a situação dos imigrantes e as que prometem colocá-los no mercado de trabalho. O primeiro serviço é o mais urgente – sem ele, o forasteiro fica clandestino. O segundo é necessário para viabilizar financeiramente a permanência do estrangeiro no país. Esse tipo de intermediação é permitido pela lei.

Em Criciúma, maior polo de atração de ganeses para o Brasil, Zero Hora recebeu a informação de que uma das empresas que legaliza a situação de estrangeiros é a Fullvisa, de Brasília. O site da firma anuncia alguns dos serviços oferecidos: visto temporário para quem tem trabalho no Brasil, transformação do visto temporário em permanente, solicitação de permanência definitiva com base em casamento com brasileira (o). No item Nossa Visão, a Fullvisa não esconde a meta: “Atingir a liderança no mercado nacional de imigração de estrangeiros”.

Como a Fullvisa se localiza em Brasília, torna-se mais fácil e ágil a entrada, acompanhamento e eventuais visitas aos órgãos responsáveis pela análise dos pedidos de visto, uma vez que estes se encontram na Capital Federal – justifica a empresa, que atua há 10 anos.

Proprietário da Fullvisa, o administrador de empresas Charliston Ferreira admite que seu ganha-pão é a legalização de estrangeiros, mas nega que priorize a nova onda de migrantes africanos e centro-americanos. Trabalha mais com auxílio a empresas europeias e americanas que pretendem trazer seus funcionários para o Brasil, para pequenas ou grandes temporadas.

– Agimos como despachantes especializados em estrangeiros. Atuamos em processos administrativos junto ao Ministério do Trabalho, requisições de visto à Polícia Federal. Conseguimos legalizar a situação de algumas centenas por ano – diz Charliston, que aprendeu o ofício nos EUA.

Agência ganha a cada empregado
Outra empresa que atua na legalização de estrangeiros é a Overseas, com sede em São Paulo. O foco é em grandes empresas multinacionais que precisam estabilizar a vida de seus funcionários estrangeiros no Brasil, mas também legaliza novos migrantes caribenhos e africanos. Há poucos dias, a Overseas conseguiu agilizar vistos para 20 haitianos que atuam num supermercado e em duas firmas de construção civil. Foi contratada pelas empresas, não pelos migrantes.

– Prestamos consultoria, ensinamos os caminhos mais ágeis – resume Mateus Valério, gerente da Overseas.
Nem ele, nem o dono da Fullvisa revelam valores cobrados.
Fábrica de móveis contrata migrantes via agência que atua há 21 anos na Serra. Foto: Diego Vara, Agência RBS

O passo seguinte, para o migrante, é conseguir serviço. É aí que entram empresas como a Talentum, agência de empregos que atua há 21 anos na região serrana do Rio Grande do Sul. No ano passado, eles arranjaram serviço para 80 migrantes africanos e caribenhos. Foram trabalhar em indústrias de sucos, de móveis, autopeças e limpeza. O recrutamento e seleção exige que pelo menos um do grupo de migrantes fale português ou espanhol. Ele será o guia dos demais nas negociações de trabalho. E qual o ganho da Talentum?

– Cobramos do empresário que vai dar emprego aos migrantes 50% do primeiro salário de cada um dos novos empregados. É uma taxa padrão – informa Ricardo Soldatelli Borges, proprietário da Talentum, que é psicólogo e ajuda a fazer a triagem. – O valor não é deduzido dos contracheques.
Borges se orgulha dessa atividade e diz que desconhece reclamações quanto à qualidade do serviço prestado pelos migrantes:
– Com a presença dos estrangeiros, diminuíram as queixas quanto a faltas ao serviço e empregados doentes.

domingo, 17 de agosto de 2014

Informacao 17-08-2014

 

Imigrantes haitianos e africanos são explorados em carvoarias e frigoríficos

Estudo recém-divulgado estima que, até o fim deste ano, haverá cerca de 50 mil de cidadãos do Haiti no Brasil

por

O Haitiano Ivon Belisarie na carvoaria: trabalho degradante e quilos a menos - Fernando Donasci / O Globo
CASCAVEL e MARINGÁ (PR) - O suor que escorre pelo rosto se junta à poeira negra do carvão e tinge a face e os braços de Ivon Belisarie. A fuligem avermelha seus olhos. Desde que chegou ao Brasil, há dois anos e meio, de segunda a sábado, das 8h às 17h, o imigrante haitiano corta madeira, abastece fornos que produzem carvão vegetal e ensaca o produto que será enviado a centros urbanos do país, numa carvoaria em Maringá (PR). Ele não se senta um minuto. Emagreceu tanto que está abaixo do peso.
No terremoto de 2010, além de nove parentes, Ivon perdeu o patrão, um empresário haitiano do ramo de arroz para quem trabalhava como motorista havia 15 anos. Percebeu então que a permanência no Haiti ficara inviável. Trocou o conforto do ar-condicionado de veículos esportivos pelo calor, a poeira negra e a insalubridade da carvoaria. E a companhia ruidosa dos filhos pela solidão de sequer ter dinheiro para telefonar para casa.
Dos dez haitianos que vieram com Ivon de Manaus para o Paraná, atraídos pela possibilidade de reconstruir a vida, ele é o único que continua na carvoaria. Em troca, recebe cerca de R$ 950.
— Deixei a mulher chorando, com um bebê no colo e mais duas crianças pelas mãos, e vim buscar dinheiro no Brasil. Tenho responsabilidade com a minha família, não podia ficar sem trabalho — conta o haitiano, que chegou a racionar comida para enviar cerca de US$ 300 aos parentes no Haiti.

Desrespeito a normas do trabalho
A 230 quilômetros da carvoaria, num frigorífico em Cascavel (PR), 380 migrantes haitianos fazem, cada um, cerca de 90 movimentos por minuto para desossar frangos e pendurar galinhas. Por um salário mensal de cerca de R$ 1 mil, suportam a rotina de oito horas e 48 minutos diários sob um frio de nove graus, temperatura abaixo do limite de 12 graus estabelecido pelo Ministério do Trabalho.

Trabalho degradante, insalubre e de baixa remuneração em empresas de setores que, frenquentemente, figuram na lista suja do trabalho escravo têm sido o destino final de haitianos e africanos que enfrentam uma travessia dispendiosa e arriscada, muitas vezes patrocinadas por coiotes, para chegar ao Brasil. E não são poucos. Um estudo recém-divulgado pelo demógrafo Duval Fernandes, da PUC-MG, estima que, até o fim deste ano, haverá cerca de 50 mil haitianos no país. Junto a senegaleses, nigerianos e bengaleses, eles têm se engajado em funções que não requerem qualquer nível educacional, e recusadas por brasileiros.

— O trabalho em frigorífico é extremamente penoso. Em três meses, o trabalhador já começa a adoecer porque não há ser humano que suporte tanto movimento repetitivo em temperatura tão baixa. Esse trabalho não interessa mais aos brasileiros. Há uma analogia entre a situação desses migrantes aqui e a dos hispânicos que lotam frigoríficos nos Estados Unidos. Só que aqui a exploração é maior — afirma o procurador do trabalho Heiler Natali, responsável pela vistoria dos frigoríficos.
Estrangeiros trabalhando no corte de frango na Coopavel, frigorifico da região que contratou 380 haitianos para auxiliar de produção. - Fernando Donasci
A história que os imigrantes contam é de promessas não cumpridas sobre salários e alojamentos.
— A coisa mais usual é que ele achem que vão ganhar US$ 2 mil por mês. São enganados e também não entendem a lógica dos impostos sobre o salário — afirma Fernandes.

O haitiano Marcelin Geffrard diz ter sido enganado por um supermercado que o levou do Acre a Cascavel:
— Me prometeram quase R$ 900. Quando cheguei ao Paraná, o salário era menor. Com os descontos, dava só R$ 600. Isso não dava para comida e aluguel, e ainda tinha que mandar dinheiro para a minha filha, no Haiti. O alojamento era sujo, camas quebraram, e a gente tinha que dormir no chão.

Em dois meses, dez quilos mais magro
Em dois anos, Geffrard, pedagogo, com curso de arquiteto inacabado e domínio de cinco idiomas, mudou de emprego cinco vezes. Hoje, trabalha como cobrador de ônibus. Aos fins de semana, faz bicos em uma pizzaria para complementar a renda. Afirma que, apesar da longa jornada de trabalho, está muito melhor hoje do que em outras ocupações:
— O pior lugar em que trabalhei foi o frigorífico. Ali aguentei só 45 dias. Fazia horas extras, mas nunca recebi por elas. Em menos de dois meses, perdi dez quilos. Muitos colegas ficaram doentes, mas os frigoríficos não aceitam atestado e descontam o dia, se você vai ao médico. Então, os haitianos preferem cair no chão doentes no meio da fábrica a ir a um hospital.

A reclamação não é isolada. No começo do ano, haitianos participaram de uma greve em um frigorífico de Maringá. Exigiam aumento, pagamento de horas extras e fim da jornada aos sábados. Suas reivindicações acabaram atendidas pelo empresário, diante da ameaça de pedidos de demissão em massa. Haitianos e africanos se tornaram hoje peças fundamentais para a produção avícola do país.

— Sem eles, eu estaria com 20% da indústria parada — afirma Aguinel Marcondes, gerente de recursos humanos da Coopavel, indústria que produz 195 mil frangos por dia e cujo faturamento em 2013 foi de R$ 1,6 bilhão.

Marcondes prossegue:
— Hoje a oferta de trabalho está grande, e não há mão de obra para suprir as necessidades dos empresários. O próprio governo sentiu isso e abriu as portas para esses imigrantes. Sem eles, o país não cresceria o que deveria.

Haitiano custa menos do que chinês
A dificuldade para preencher vagas nessas indústrias com brasileiros não é a única vantagem na contratação de quem chega de fora. Os empresários têm enxergado neles, sobretudo nos haitianos, uma oportunidade para reduzir seu custo de produção. Uma pesquisa feita pelo economista britânico Paul Collier, para a Organização das Nações Unidas (ONU), mostrou que, em 2009, o Haiti tinha um grande excedente de mão de obra qualificada. Segundo o estudo, o trabalhador haitiano custava mais barato do que o chinês. Após o terremoto que atingiu o país, em 2010, o excedente de mão de obra aumentou. E esses trabalhadores começaram a desembarcar no Brasil.

Além de frigoríficos e carvoarias, eles começaram a ser empregados em massa na construção civil. A situação chamou a atenção do Ministério Público do Trabalho do Paraná, que investiga denúncias dos sindicatos locais de que empreiteiras têm sido constituídas apenas para contratar esses imigrantes. Elas preenchem as folhas da carteira de trabalho, mas jamais registram o trabalhador efetivamente.
Haitianos e africanos descobrem a fraude meses depois, quando o contrato termina, e eles não têm direito à rescisão e ao seguro-desemprego, ou quando sofrem acidentes e não contam com cobertura do INSS. Eles também receberiam menos do que o piso da categoria e cumpririam jornadas de trabalho superiores ao limite estabelecido pela legislação.

Foi o que aconteceu em Conceição do Mato Dentro (MG), onde cem haitianos trabalhavam na construção de um mineroduto da empresa Anglo American. O fiscal do trabalho que atuou no caso relatou que o alojamento deles lembrava uma senzala. A comida fornecida era de baixa qualidade, o que teria provocado hemorragias estomacais.

Para tentar se defender, em Cascavel, onde há pelo menos 1,5 mil haitianos, eles criaram há dois meses a Associação de Defesa dos Direitos dos Imigrantes Haitianos. A entidade já ganhou uma ação contra um frigorífico que demitiu uma haitiana grávida e obteve acordo com uma empreiteira que não havia pago verbas rescisórias.


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