ONG Conectas denunciou condições inadequadas na recepção aos
imigrantes no Acre
A situação dos imigrantes haitianos que todos os dias cruzam a
fronteira com o Peru e chegam a Brasileia, no Acre, pode virar pauta de
discussão na OEA (Organização dos Estados Americanos). A ONG Conectas pediu
nesta sexta-feira a realização de uma audiência temática na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos para deabater a questão e discutir temas como
o que chamou de "jogo de palavras" do governo brasileiro na emissão de vistos
aos imigrantes que chegam ilegalmente ao país com ajuda de coiotes.
A pequena cidade acriana virou o destino final de uma recém-criada rota de
imigração ilegal e é hoje a principal porta de entrada dos haitianos que fogem
da miséria de seu país, ainda estremecido pelos efeitos devastadores do
terremoto de 2010. A população local teve de se resignar com a população
flutuante que se espalha pelas ruas e sobrecarrega o hospital do lugar.
Em carta à OEA, a Conectas justifica o pedido dizendo tratar-se de "um fluxo
de dimensão regional, cujas violações e possíveis soluções devem ser discutidas
no âmbito da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humnaos), no marco do
respeito aos direitos humanos".
O Itamaraty foi informado da iniciativa com antecedência e não fez
comentários.
O grande afluxo de imigrantes fez o Brasil oferecer um visto de caráter
humanitário exclusivo para os haitianos a partir de 2012. O processamento dos
pedidos é feito na Embaixada do Brasil em Porto Príncipe e em outros postos no
exterior designados pelo Itamaraty, segundo resoluções 97 e 102 do
Conselho
Nacional de Imigração.
Mas é para Brasileia que muitos ainda se dirigem, depois de tomar rotas de
imigração ilegal que passam pelo Equador, Colômbia e Peru.
Nos períodos de maior movimento, mais de 50 imigrantes cruzam a fronteira por
dia, segundo o governo do Acre. Em território brasileiro, os imigrantes
clandestinos são regularizados pela Polícia Federal.
Enquanto aguardam a documentação e os contratos de trabalho que lhes darão
uma nova oportunidade de vida em outras regiões do país, esses imigrantes se
amontoam em um abrigo improvisado que já não consegue absorver as centenas de
homens e mulheres que fazem do Acre o ponto de partida para o “sonho
brasileiro”.
"É insalubre, desumano até. Os haitianos passam a noite empilhados uns sobre
os outros, sob um calor escaldante, acomodados em pedaços de espuma que algum
dia foram pequenos colchonetes", relata João Paulo Charleaux, coordenador de
Comunicação da Conectas.
A ONG disse que a maioria dos entrevistados se queixou de dores abdominais
durante a visita. Entre os atendidos no hospital municipal, 90% sofrem de
diarreia, segundo informações apuradas pela Conectas.
A ONG disse que há apenas um único ponto de distribuição de água, com três
torneiras.
'Jogo de palavras'
Mais de 10 mil haitianos já passaram por Brasileia, segundo o
governo do Acre
A ONG critica a falta de clareza do Brasil na regularização dos haitianos, o
que chamou de "jogo de palavras".
Para os haitianos que pedem o visto em Porto Príncipe, a resolução 97 é clara
em dizer que se trata de um “visto de caráter humanitário”, emitido
exclusivamente no exterior.
O Ministério da Justiça aplica, no entanto, a mesma resolução para emitir
visto humanitário no Brasil (o que não é previsto), negando se tratar de um
processo de refúgio.
Questionado pela reportagem, o Ministério da Justiça disse que se baseia na
Convenção de 1951 e no Protocolo de 1967 das Nações Unidas. Os documentos em
questão, no entanto, regulam a política de refúgio. O ministério não comentou a
aparente contradição de suas respostas.
Na segunda-feira, o escritório do relator especial sobre os direitos humanos
da ONU, François Crépeau, e o do especialista independente para os direitos
humanos no Haiti, Gustavo Gallón, também foram notificados sobre a situação dos
imigrantes haitianos em Brasileia pela ONG Conectas.
Problema acriano
"O Acre está exaurido". É assim que o secretário de Direitos Humanos do Acre,
Nilson Mourão, classifica a a situação em Brasileia, por onde, segundo ele, já
passaram milhares de haitianos.
"Desde o início desse fluxo de imigração, mais de dez mil haitianos já
passaram aqui no Acre. Todos foram acolhidos e receberam atenção humanitária.
Essa é uma questão de ordem federal e o governo do Acre e a prefeitura de
Brasileia estão sobrecarregados", disse.
Governo do Acre quer que o governo federal assuma a manutenção
do abrigo
Mourão nega que os imigrantes estejam "confinados" no abrigo em Brasileia,
como disse a Conectas em seu relatório e afirma que o governo do Estado assegura
condições dignas no abrigo sob sua responsabilidade na cidade fronteriça.
O secretário também cobra ajuda do governo federal, que em abril mandou uma
força-tarefa para a cidade, a fim de acelerar a legalização dos haitianos.
"Se o Brasil adotar essa política de braços-abertos a imigrantes, precisa
assumir diretamente a gestão do abrigo", disse Mourão. Ele disse que considera
"útil" a discussão desse tema na OEA, já que não se trata de um problema
exclusivamente brasileiro, mas também de outros países parte da rota de
migração.
Mourão disse que durante o trabalho da força-tarefa do governo federal em
março houve um acordo pelo qual o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
à Fome se responsabilizaria pelo custeio das cerca de 2.500 refeições diarias do
abrigo.
Desde então, a fatura já passa de R$ 700 mil e não houve repasse por parte do
ministério, segundo Mourão. Em Brasília, o ministério nega o acordo, dizendo
apenas ser responsável pelo "cofinanciamento" do abrigo. O ministério disse que
já desembolsou mais de R$ 900 mil antes de abril, mas não explicou se o
"cofinanciamento" prevê o envio da verba mencionada pelo secretário.
Tanto Mourão quanto a Conectas chamam a atenção para a crise instalada em
Brasileia.
"Embora os moradores mostrem compreensão e solidariedade com os haitianos, as
manifestações de cansaço e descontentamento são cada vez mais frequentes. Os
moradores do campo (imigrantes) competem por vagas com os moradores locais nos
postos de saúde, supermercados, padarias, agências bancárias, farmácias,
correios e demais serviços públicos", disse o relatório da Conectas.