Haiti, Acre e Copa 2014: histórias e terremoto, entre a fé e o futebol.
Após tragédia, haitianos entram de forma descontrolada no Brasil em rota que passa pelo Acre.
Alguns trabalham nas obras dos estádios que receberão jogos do Mundial
“O jornalismo esportivo nos
reserva o privilégio de conviver, [...], com os sentimentos maiores e
menores do ser humano. Prepare, amigo, a sua alma para o patético e para
o lírico, para o amargo e para o sublime, [...], o homem odeia, castiga
e perdoa. No esporte, como na vida, não há vitórias nem derrotas
definitivas”. As palavras do acreano Armando Nogueira fazem acreditar
que o esporte é capaz de ir além do que se imagina. E como é. É capaz de
ligar três realidades completamente diferentes, de misturar pessoas e
de nos fazer sonhar. O Haiti, o Acre e a Copa do Mundo de 2014 têm uma
relação de dor, fé e a esperança que o futebol pode proporcionar.
A presença de trabalhadores
haitianos foi confirmada nas obras da Arena da Amazônia, em Manaus, e
Arena Pantanal, em Cuiabá. Os imigrantes também ajudaram na construção do Mineirão, em Belo Horizonte, e Arena Beira-Rio, em Porto Alegre. Eles entraram no país por Brasiléia (AC), Tabatinga (AM) e outras rotas.
Segundo a Unidade Gestora da
Copa (UGP Copa), do Amazonas, atualmente, a Construtora Andrade
Gutierrez conta com 54 haitianos trabalhando como funcionários
terceirizados e 14 como funcionários diretos no canteiro de obras da
Arena da Amazônia, todos recebendo salário superior ao piso mínimo
estabelecido por lei. A Construtora Mendes Júnior, responsável pela
Arena Pantanal, informou que 140 imigrantes do Haiti trabalham na obra
atualmente. No Beira-Rio, são nove funcionários haitianos, todos
contratados por empresas terceirizadas. Após a conclusão do estádio, os
trabalhadores serão transferidos para outras obras.
Entre a desconfiança dos 22 mil
habitantes do pacato município de Brasiléia, no interior do Acre, que
faz fronteira com a Bolívia, e um futuro incerto, mais de 16.100
imigrantes já passaram pelo estado para entrar no Brasil, segundo a
Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos. A tríplice fronteira
entre o Brasil, o Peru e a Bolívia, no Acre, é, há três anos, a
principal porta de entrada dos haitianos, que começaram a chegar em
dezembro de 2010, depois do terremoto que matou mais de 200 mil pessoas
no país caribenho.
Durante esse tempo, a rotina é a
mesma: eles chegam, buscam a regularização dos documentos de imigração e
vão para as grandes cidades do país em busca de um emprego e boas
condições de vida. Alguns entraram pelo Acre e hoje estão ajudando a
construir um dos maiores eventos que o país vai receber na década: a
Copa do Mundo de Futebol. Porém, enquanto uns trabalham nas obras dos
modernos estádios para receber os jogos, outros continuam chegando em
Brasiléia, com o mesmo sonho.
Fã de grandes jogadores do
Brasil e da Seleção comandada pelo técnico Luiz Felipe Scolari, o
haitiano Wisly Delva, 30 anos, chegou em Brasiléia, localizado a 265km
de Rio Branco, capital do Acre, no dia 24 de janeiro. Do Haiti ao
Brasil, ele encarou uma viagem de sete dias e gastou cerca de R$ 6 mil.
Especializado na área de construção civil, ele sonhava em trabalhar nas
obras dos estádios que vão receber jogos da Copa do Mundo.
-
Não tenho nenhum amigo que esteja trabalhando nessas obras, mas queria
estar lá. Sou fã do Brasil, dos jogadores… Ronaldo, Neymar, Cafu,
Roberto Carlos… Acredito que o Brasil vai ser o campeão porque tem
jogador para ganhar – apostou Delva, que deixou a família no Haiti e
busca em terras brasileiras uma oportunidade de ter uma estabilidade
financeira.
Mackson Joseph, 36 anos, cursava
engenharia elétrica em uma universidade do Haiti. Há um mês em
Brasiléia, ele pretende terminar o curso, mas por enquanto vai trabalhar
em outra área. Joseph foi um dos selecionados para prestar serviço em
um supermercado em Anápolis (GO).
- Tenho amigos que trabalham em
obras de estádios em São Paulo e Rio Grande do Sul. Também queria estar
lá, mas não consegui – completou Joseph.
Enquanto permanecem na terra de
Armando Nogueira, os imigrantes buscam na fé uma forma de seguir em
frente. Entre as milhares de malas, roupas e colchões velhos espalhados
no abrigo onde estão, chama a atenção a religiosidade. É comum vê-los
deitados lendo a bíblia. Mais comum ainda é o tradicional culto
evangélico, realizado todos os domingos (veja o vídeo ao lado). Fieis e
sonhadores, eles querem esquecer o passado e começar de novo em uma
realidade ainda desconhecida.
ROTA, ABRIGO E TRABALHO
O
cotidiano da pequena Brasiléia mudou há três anos. No município, um
abrigo mantido pelos governos do Acre e federal acolhe os imigrantes. No
início, eram somente haitianos. Hoje, segundo a Secretaria Estadual de
Justiça e Direitos Humanos (Sejudh), a fronteira conta com a chegada de
haitianos, senegaleses, dominicanos e outras nacionalidades.
- Eles pegam um voo para o
Panamá, de lá seguem de avião para o Equador, e depois de ônibus até
Iñapari (Peru), fronteira do Brasil. Eles pegam um táxi e vem para
Brasiléia, o que dá cerca de 110km. O Brasil está recebendo haitianos
pela questão imigratória. Não podemos fazer nada. Nós trabalhamos com a
questão dos direitos humanos, mas questão de documentos não é com a
gente. Desde de dezembro de 2010 já se passaram mais de 16 mil
imigrantes. No Brasil eu acho que tem mais de 30 mil – explicou o
coordenador do abrigo, Damião Borges.
No começo, a população do
município ‘abraçou’ a causa e mostrou solidariedade com a situação dos
imigrantes. Porém, o tempo passou, as coisas não mudaram e a permanência
dos ‘visitantes’ tem gerado incômodo em parte dos moradores de
Brasiléia.
- A população ajudou muito
pensando que seria passageiro, mas hoje virou rotina e a já está
irritando muito. A pessoa reclama que vai ao banco e está lotado, vai na
Receita… Ou seja, em todo lugar que vai fica lotado. Entre imigrantes
já teve briga, mas entre brasileiros e imigrantes não. Sou daqui, mas
evito ir nos lugares para não entrar em choque com a população. Me
afastei de muitos lugares que eu ia antes para não ter que ouvir algumas
coisas.
Hoje, o abrigo, que foi
construído de forma provisória em um antigo clube de dança, tem
capacidade para receber 400 pessoas, mas quase mil imigrantes estão no
local. Este é o sexto lugar que eles ficam na cidade. O governo gasta R$
12 em refeição para cada um. Ou seja, apenas em comida, são gastos
cerca de R$ 12 mil por dia e R$ 360 mil por mês. A rotina é praticamente
a mesma: enquanto uns saem, outros chegam. A média é de 50 por dia.
- Eles vêm porque foi colocado
que aqui pagam em dólar, que é uma maravilha. De cada dez que chegam, a
gente pergunta a profissão. Eles só têm duas, construção civil e
comerciante. Eles falam isso porque a construção civil é mais fácil, mas
é pesada. E a mulher é só comerciante, o que dificulta porque espaço
para mão de obra é masculina. As empresas têm reduzido as contratações
agora porque está tendo muito problema. A cada dez que eles levam, cinco
desistem do trabalho em 30 ou 90 dias. É R$ 800,00 o custo mínimo para
uma empresa levar um daqui. Eles abandonam porque não têm o hábito de
trabalhar.
Além da construção civil,
empresas de abatedores de aves e bovinos são as que mais contratam os
imigrantes. Desde a chegada até a saída de Brasiléia, eles passam cerca
de 25 a 30 dias no abrigo do município. Os estados que mais recebem são
Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná. De acordo com o
superintendente do Ministério do Trabalho do Acre, Manoel Neto, quase 11
mil imigrantes tiraram carteira de trabalho no estado.
João Paulo Maia Brasiléia, AC
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