sábado, 1 de março de 2014

Noticia 26-02-2014

Haiti, Acre e Copa 2014: histórias e terremoto, entre a fé e o futebol.

Após tragédia, haitianos entram de forma descontrolada no Brasil em rota que passa pelo Acre.

Haitianos trabalharam nas obras do Mineirão, inaugurado no início de 2013 (Foto: Lucas Catta Prêta / Globoesporte.com
Haitianos trabalharam nas obras do Mineirão, inaugurado no início de 2013 (Foto: Lucas Catta Prêta / Globoesporte.com

Alguns trabalham nas obras dos estádios que receberão jogos do Mundial

“O jornalismo esportivo nos reserva o privilégio de conviver, [...], com os sentimentos maiores e menores do ser humano. Prepare, amigo, a sua alma para o patético e para o lírico, para o amargo e para o sublime, [...], o homem odeia, castiga e perdoa. No esporte, como na vida, não há vitórias nem derrotas definitivas”. As palavras do acreano Armando Nogueira fazem acreditar que o esporte é capaz de ir além do que se imagina. E como é. É capaz de ligar três realidades completamente diferentes, de misturar pessoas e de nos fazer sonhar. O Haiti, o Acre e a Copa do Mundo de 2014 têm uma relação de dor, fé e a esperança que o futebol pode proporcionar.
A presença de trabalhadores haitianos foi confirmada nas obras da Arena da Amazônia, em Manaus, e Arena Pantanal, em Cuiabá. Os imigrantes também ajudaram na construção do Mineirão, em Belo Horizonte, e Arena Beira-Rio, em Porto Alegre. Eles entraram no país por Brasiléia (AC), Tabatinga (AM) e outras rotas.
Segundo a Unidade Gestora da Copa (UGP Copa), do Amazonas, atualmente, a Construtora Andrade Gutierrez conta com 54 haitianos trabalhando como funcionários terceirizados e 14 como funcionários diretos no canteiro de obras da Arena da Amazônia, todos recebendo salário superior ao piso mínimo estabelecido por lei. A Construtora Mendes Júnior, responsável pela Arena Pantanal, informou que 140 imigrantes do Haiti trabalham na obra atualmente. No Beira-Rio, são nove funcionários haitianos, todos contratados por empresas terceirizadas. Após a conclusão do estádio, os trabalhadores serão transferidos para outras obras.
Entre a desconfiança dos 22 mil habitantes do pacato município de Brasiléia, no interior do Acre, que faz fronteira com a Bolívia, e um futuro incerto, mais de 16.100 imigrantes já passaram pelo estado para entrar no Brasil, segundo a Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos. A tríplice fronteira entre o Brasil, o Peru e a Bolívia, no Acre, é, há três anos, a principal porta de entrada dos haitianos, que começaram a chegar em dezembro de 2010, depois do terremoto que matou mais de 200 mil pessoas no país caribenho.
Em Brasiléia, haitianos conhecem o mascote da Copa de 2014 (Foto: Amanda Borges/G1)
Em Brasiléia, haitianos conhecem o mascote da Copa de 2014 (Foto: Amanda Borges/G1)
Durante esse tempo, a rotina é a mesma: eles chegam, buscam a regularização dos documentos de imigração e vão para as grandes cidades do país em busca de um emprego e boas condições de vida. Alguns entraram pelo Acre e hoje estão ajudando a construir um dos maiores eventos que o país vai receber na década: a Copa do Mundo de Futebol. Porém, enquanto uns trabalham nas obras dos modernos estádios para receber os jogos, outros continuam chegando em Brasiléia, com o mesmo sonho.
Fã de grandes jogadores do Brasil e da Seleção comandada pelo técnico Luiz Felipe Scolari, o haitiano Wisly Delva, 30 anos, chegou em Brasiléia, localizado a 265km de Rio Branco, capital do Acre, no dia 24 de janeiro. Do Haiti ao Brasil, ele encarou uma viagem de sete dias e gastou cerca de R$ 6 mil. Especializado na área de construção civil, ele sonhava em trabalhar nas obras dos estádios que vão receber jogos da Copa do Mundo.
img_3173- Não tenho nenhum amigo que esteja trabalhando nessas obras, mas queria estar lá. Sou fã do Brasil, dos jogadores… Ronaldo, Neymar, Cafu, Roberto Carlos… Acredito que o Brasil vai ser o campeão porque tem jogador para ganhar – apostou Delva, que deixou a família no Haiti e busca em terras brasileiras uma oportunidade de ter uma estabilidade financeira.
Mackson Joseph, 36 anos, cursava engenharia elétrica em uma universidade do Haiti. Há um mês em Brasiléia, ele pretende terminar o curso, mas por enquanto vai trabalhar em outra área. Joseph foi um dos selecionados para prestar serviço em um supermercado em Anápolis (GO).
- Tenho amigos que trabalham em obras de estádios em São Paulo e Rio Grande do Sul. Também queria estar lá, mas não consegui – completou Joseph.
Enquanto permanecem na terra de Armando Nogueira, os imigrantes buscam na fé uma forma de seguir em frente. Entre as milhares de malas, roupas e colchões velhos espalhados no abrigo onde estão, chama a atenção a religiosidade. É comum vê-los deitados lendo a bíblia. Mais comum ainda é o tradicional culto evangélico, realizado todos os domingos (veja o vídeo ao lado). Fieis e sonhadores, eles querem esquecer o passado e começar de novo em uma realidade ainda desconhecida.
ROTA, ABRIGO E TRABALHO
info_haitianos_no_acreO cotidiano da pequena Brasiléia mudou há três anos. No município, um abrigo mantido pelos governos do Acre e federal acolhe os imigrantes. No início, eram somente haitianos. Hoje, segundo a Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh), a fronteira conta com a chegada de haitianos, senegaleses, dominicanos e outras nacionalidades.
- Eles pegam um voo para o Panamá, de lá seguem de avião para o Equador, e depois de ônibus até Iñapari (Peru), fronteira do Brasil. Eles pegam um táxi e vem para Brasiléia, o que dá cerca de 110km. O Brasil está recebendo haitianos pela questão imigratória. Não podemos fazer nada. Nós trabalhamos com a questão dos direitos humanos, mas questão de documentos não é com a gente. Desde de dezembro de 2010 já se passaram mais de 16 mil imigrantes. No Brasil eu acho que tem mais de 30 mil – explicou o coordenador do abrigo, Damião Borges.
No começo, a população do município ‘abraçou’ a causa e mostrou solidariedade com a situação dos imigrantes. Porém, o tempo passou, as coisas não mudaram e a permanência dos ‘visitantes’ tem gerado incômodo em parte dos moradores de Brasiléia.
- A população ajudou muito pensando que seria passageiro, mas hoje virou rotina e a já está irritando muito. A pessoa reclama que vai ao banco e está lotado, vai na Receita… Ou seja, em todo lugar que vai fica lotado. Entre imigrantes já teve briga, mas entre brasileiros e imigrantes não. Sou daqui, mas evito ir nos lugares para não entrar em choque com a população. Me afastei de muitos lugares que eu ia antes para não ter que ouvir algumas coisas.
Hoje, o abrigo, que foi construído de forma provisória em um antigo clube de dança, tem capacidade para receber 400 pessoas, mas quase mil imigrantes estão no local. Este é o sexto lugar que eles ficam na cidade. O governo gasta R$ 12 em refeição para cada um. Ou seja, apenas em comida, são gastos cerca de R$ 12 mil por dia e R$ 360 mil por mês. A rotina é praticamente a mesma: enquanto uns saem, outros chegam. A média é de 50 por dia.
- Eles vêm porque foi colocado que aqui pagam em dólar, que é uma maravilha. De cada dez que chegam, a gente pergunta a profissão. Eles só têm duas, construção civil e comerciante. Eles falam isso porque a construção civil é mais fácil, mas é pesada. E a mulher é só comerciante, o que dificulta porque espaço para mão de obra é masculina. As empresas têm reduzido as contratações agora porque está tendo muito problema. A cada dez que eles levam, cinco desistem do trabalho em 30 ou 90 dias. É R$ 800,00 o custo mínimo para uma empresa levar um daqui. Eles abandonam porque não têm o hábito de trabalhar.
Abrigo com capacidade para 400 pessoas recebe quase mil imigrantes (Foto: Amanda Borges/G1)
Abrigo com capacidade para 400 pessoas recebe quase mil imigrantes (Foto: Amanda Borges/G1)
Além da construção civil, empresas de abatedores de aves e bovinos são as que mais contratam os imigrantes. Desde a chegada até a saída de Brasiléia, eles passam cerca de 25 a 30 dias no abrigo do município. Os estados que mais recebem são Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná. De acordo com o superintendente do Ministério do Trabalho do Acre, Manoel Neto, quase 11 mil imigrantes tiraram carteira de trabalho no estado.
 Brasiléia, AC

Nenhum comentário:

Postar um comentário