Brasil concedeu mais de 13 mil vistos humanitários a haitianos em três anos
Muitos, no entanto, ingressam no país pelo Acre ilegalmente
ESPECIAL HAITI: MISÉRIA, AJUDA E ESPERANÇA
>>>Entidade de religiosos brasileiros atende centenas de haitianos por dia
>>> Haiti tenta se reerguer cinco anos após o terremoto
>>> Autoridades defendem saída gradual das tropas da ONU do Haiti
>>> O contraste da maioria miserável com a minoria rica no Haiti
Haitianos em frente à base militar em Cite Soleil
Em novembro do ano passado, Porto Alegre conviveu com uma nova onda migratória de haitianos. Eles chegavam na Capital gaúcha em ônibus que saíam do Acre, porta de entrada para muitos, em razão da distância menor em relação ao país de origem, e dos coiotes, que trazem ilegalmente essas pessoas. O mesmo já havia ocorrido em 2012, quando vários ingressaram no Brasil. Aliás, muitos seguem até hoje no País. Estivemos no Haiti para buscar explicações para essa nova onda migratória para o Brasil.
A reportagem da Rádio Gaúcha esteve em frente à embaixada brasileira no Haiti, no Bairro de Pentio-Ville, o mais rico e desenvolvido do país, que fica na capital Porto Príncipe. Em frente ao prédio, que também abriga a embaixada do Japão, haitianos faziam fila em busca de visto.
Em entrevista à Rádio Gaúcha em Porto Príncipe, o embaixador brasileiro no Haiti, José Luiz Machado e Costa, disse que a pressão social de evasão de haitianos já existe há algum tempo. Afirma que não há motivo novo em relação à primeira onda migratória mais forte ocorrida em 2012. De acordo com o diplomata, os haitianos que estão no Brasil passam cada vez mais informações sobre o País aos que ainda seguem em solo haitiano. Destaca que eles partem em busca de melhores condições de vida.
“E os haitianos em busca de oportunidade, de melhores condições de vida que o país não pode lhes oferecer, eles procuram migrar para os Estados Unidos, para Canadá, para a Europa e, agora, para o Brasil. Porque o Brasil com uma política migratória de abertura para os haitianos especificamente que retiram um visto de permanência humanitária e isso obviamente tem atraído muitos haitianos”, destaca o diplomata.
Embaixador brasileiro no Haiti - José Luiz Machado e Costa
Para o embaixador, a procura pelo Rio Grande do Sul ocorre em função da oferta de trabalho.
“Muitos deles têm escolhido o Sul. Pelas oportunidades que têm aparecido lá, especialmente na área agrícola e na área têxtil”, destaca o embaixador, que é gaúcho de Porto Alegre.
Os haitianos que buscam o Brasil para trabalhar ficam principalmente em São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Conforme o Ministério de Relações Exteriores do Brasil, resoluções normativas de 2012 e 2013 do Conselho Nacional de Imigração autorizaram o Itamaraty a conceder Vistos Permanentes a cidadãos haitianos, por razões humanitárias, o que tem motivado o ingresso no País. Desde janeiro de 2012, foram concedidos 13.364 vistos humanitários para haitianos e familiares que os visitam no Brasil. Somente em 2014, foram 6.849.
No Bairro de Simon, em Porto Príncipe, Jeandie Biw, 42 anos, reclamava da falta de trabalho.
“A gente não tem emprego. Se eu estivesse trabalhando, eu não diria isso”, lamenta.
Jeandie Biw, de 42 anos
O haitiano conta que vive de bicos.
“Eu faço tráfego de caminhões. Aí quando a gente tem uma oportunidade a gente faz, quando a gente não tem, fica sem”, conta o haitiano.
Jeandie Biw não tem filhos. Diz que se tivesse, não permaneceria no Haiti.
“Eu não tenho filhos. Se eu tivesse, não ficaria no Haiti. Eu sou um pouco dominicano (A República Dominicana faz fronteira com o Haiti) e um pouco haitiano. Tenho duas nacionalidades”, diz Biw.
Em frente à Base Militar da ONU em Cité Soleil, distrito de Porto Príncipe, dezenas de crianças e adolescentes se aglomeram a cada abertura dos portões para entrada e saída de viaturas. Apesar de viver na região mais violenta e miserável das américas, essa adolescente (de camisa laranja) diz que quer ir para o Brasil, mas não para o Rio de Janeiro devido a violência.
“Eu quero ir para o Brasil, mas só quando eu fizer 18 anos. Vou lá pro Amapá, que é mais tranquilo. Não vou pro Rio de Janeiro, porque lá tem muita violência", conta.
Portões entreabertos na base militar em Cite Soleil
Bane Sina, de 34 anos, assim como 80 % da população, está desempregado.
“Estou desempregado. Não tem trabalho. Eu tenho dois filhos. Um tem 14 anos e outro tem 10 anos. Eu sobrevivo vendendo fruta-pão. Eu vendo água. Com esse dinheiro, compro fruta-pão para eles e outras coisas. Quando eu não tenho nada, fico sem comer”, lamenta haitiano.
Jameson Benoti, 22 anos, trabalhou como intérprete dos militares brasileiros em 2004, durante a presença do segundo contingente no Haiti. Já está sem emprego há bastante tempo. Ele vestia uma camisa do Grêmio em frente à base militar brasileira em Porto Príncipe quando falou à reportagem.
“Eu estou com essa camisa porque sou gremista. Porque é um bom time no Brasil. Eu sou Grêmio”, disse Benoit.
Haitiano com camisa do Grêmio
Assim como a maioria dos haitianos com quem conversamos, Jameson afirma que o Brasil é bastante procurado em função da oferta de trabalho.
“Gosto de ir para o Brasil para ir lá buscar a vida, né. Ajudar a família deles. Tem pessoa que foi pro Brasil e deixou a família”. Para ele, se o haitiano for para o Brasil ganhando um salário mínimo já está mais do que bom.
“É bom, é bom. Para uma pessoa que não está fazendo nada aqui no Haiti, que está desempregado, é bom”, admite o haitiano.
Enso Marc de Oliveira é adolescente e ainda não pode ir sozinho para o Brasil. Mas não vê a hora de chegar à maioridade ou de conseguir uma forma de viajar.
Enso Marc de Oliveira
“Eu quero ir pro Brasil agora. Eu já tenho passaporte, mas tenho que ter um responsável, um amigo para me ajudar e ir pro Brasil”, afirma.
Rádio Gaúcha acompanha haitianos em viagem ao Brasil
Para ilustrar ainda mais essa nova onda migratória para o Brasil, a Rádio Gaúcha acompanhou a viagem de três haitianos de Porto Príncipe até Porto Alegre. Apenas um falava um pouco português e auxiliava os demais no Aeroporto de Porto Príncipe. O trio juntou dinheiro por alguns meses para pagar as passagens de avião. Muralson Lucien, 20 anos, conta que já esteve no Brasil uma vez e que a busca por trabalho é o que move os haitianos.
“Tem trabalho. Lá no Haiti falta empresa. Então eu vim aqui para trabalhar”, disse o jovem.
Depois de 10 horas de avião entre Porto Príncipe e Porto Alegre, com uma parada no Panamá, o trio de haitianos ainda seguiria de ônibus até o Paraná.
“Vou lá em Maringá. Já tenho emprego lá”, relatava o haitiano.
Muralson Lucien
Muralson Lucien diz que a família ficou no Haiti, mas que ele gostaria que estivesse com ele.
“Lá é difícil de conseguir liberação”.
Com os olhos cheios de lágrimas, o haitiano deixou o posto de fiscalização do Ministério da Agricultura no Aeroporto Salgado Filho, já em Porto Alegre. Estava desembarcando com 5kg de carne de cabrito na mala e foi obrigado a jogar fora pela vigilância sanitária. Depois disso, o trio partiu do aeroporto até o trem e seguiu para a Rodoviária de Porto Alegre, onde pegou o ônibus para o Paraná. Quando falamos novamente com Muralson, desta vez através do Facebook, ele já estava em Maringá. Disse que não havia conseguido o emprego que estava praticamente garantido e pedia ajuda para comprar comida.
O apoio e a dificuldade na chegada
Como se pode perceber, o principal motivo para migração dos haitianos para o Brasil é a busca por trabalho. E o Ministério Público do Trabalho é um dos principais órgãos que presta o suporte a eles, que muitas vezes chegam extrema dificuldade com o idioma. A procuradora do trabalho em Porto Alegre, Patrícia Sanfelici, trabalha desde 2012 com esse tema, quando houve o primeiro fluxo migratório mais forte para o Rio Grande do Sul.
“Nós participamos de algumas audiências públicas chamadas pela Assembleia Legislativa e acabamos fazendo um grupo interinstitucional que foi até Rio Branco verificar como estava havendo o ingresso dos haitianos no Brasil e como que eles vinham parar aqui no Rio Grande do Sul, um percurso tão longo em busca de uma condição melhor de vida”, lembra a procuradora.
O procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho em Rondônia e Acre, Marcos Cutrim, explica como funciona esse direcionamento dos haitianos para outros estados.
“O estado do Acre vinha mantendo um contrato com uma empresa de transporte interestadual por meio do qual o Estado do Acre encaminhava os imigrantes tanto para São Paulo, como pra outras cidades, como do Estado do Rio Grande do Sul”, relata o procurador.
Marcos Cutrim dá mais detalhes sobre os principais ramos de atuação que são direcionados os haitianos.
“Os imigrantes haitianos que têm entrado na fronteira do Acre com a Bolívia e o Peru têm buscado emprego sobretudo no centro-sul, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná. Eles vão para as atividades frigorífico e da construção civil, que são grandes empregadores desse fluxo migratório”, afirma.
A procuradora do Trabalho de Porto Alegre, Patrícia Sanfelici, reforça que a preocupação principal é que essas pessoas não sejam levadas à situação análoga à escravidão.
“Pra gente ter certeza de que esses indivíduos não estavam sendo alvo de qualquer exploração a gente propôs investigação em face de todas as empresas para verificar a regularidade da contratação desses estrangeiros”, destaca.
Patrícia Sanfelici conta que mesmo os haitianos com formação buscavam qualquer tipo de trabalho, desde que estejam no Brasil.
“Os imigrantes haitianos que eu tive contato a sua grande maioria se forma por pessoas instruídas, pessoas que muitas vezes têm grau superior e, no entanto, ao chegarem aqui, eles não conseguem se alocar no mercado de trabalho da sua área, e acabam sendo postos em trabalhos que os brasileiros já não estão sendo suficientes para ocupar”, relata Patrícia.
O procurado Marcos Cutrim revela a quantidade impressionante de imigrantes haitianos que chegaram ao Acre desde o terremoto que devastou o país.
“Estima-se que, ao menos, em torno de 30 a 40 mil haitianos já chegaram ao estado do Acre e já foram atendidos pelas políticas públicas que lá existem desde o início dessa crise migratória que começou em 2010”, ressalta.
A procuradora Patrícia Sanfelici faz uma lembrança importante sobre a legislação trabalhista.
“O que a gente tem como regra é que não se tem possibilidade de se diferenciar. Seja um trabalhador estrangeiros ou nacional, eles têm os mesmos direitos trabalhistas. Não pode haver diferença salarial, não pode haver diferença no contrato de trabalho, não pode haver discriminação”, lembra a procuradora.
No Acre, foi desativado o abrigo em Brasiléia, na fronteira com a Bolívia. Uma chácara, em Rio Branco, passou a ser o abrigo atual. Mas o problema é que está superlotada.
“A chácara tem capacidade para 200 pessoas, mas, devido às dificuldades orçamentárias que o estado do Acre vem enfrentado, além da falta de apoio financeiro da União em promover essas políticas para acolher esses migrantes, em janeiro estima-se que tenha chegado a 800 o número de imigrantes que estão vivendo lá no abrigo”, lamenta o procurador.
Pelo sorriso das crianças que pudemos presenciar no Haiti, mesmo com todas as dificuldades, é possível ter esperança de um país melhor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário