sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Parecer de Sebastien Kiwonghi sobre Haitianos no Brasil

Colunas Sebastien Kiwonghi

20/01/2012

Condição jurídica de haitianos no Brasil e Direito Internacional Humanitário: uma confusão drasticamente terminológica

A entrada massiva de haitianos no Brasil tem provocado reações diversas e uma confusão terminológica nas entrevistas concedidas aos jornalistas nacionais e internacionais por algumas autoridades competentes.

Procura-se, no presente artigo, esclarecer a terminologia exata a ser utilizada no caso em tela de conformidade com as leis vigentes na República Federativa do Brasil e propor pistas para sustentar os debates efusivos gerados acerca das conseqüências da presença permanente dos haitianos no território nacional enquanto estrangeiros amparados por normas de direito internacional, especialmente do direito internacional humanitário.

A última decisão do governo brasileiro sobre a necessidade de emissão de vistos aos haitianos que vierem depois da data estipulada para regularizar a situação jurídica daqueles que já se encontram no Brasil reacendeu discussões sobre a relevância do direito internacional humanitário para não fechar as portas, considerando a destruição do país de origem pelo terremoto e a situação de miséria e pobreza extrema em que vive o povo haitiano, praticamente abandonado pela comunidade internacional que mal consegue honrar seus compromissos financeiros para a reconstrução do país em ruínas.

Com efeito, a decisão do governo brasileiro de regularizar a condição jurídica de haitianos, de um lado, estendo a mão e oferecendo emprego, e, do outro, fechando as portas, exigindo, doravante, a concessão de visto pela representação diplomática ou consular brasileira em Porto Príncipe, continua recebendo aprovação e reprovação do povo, conforme a tendência escolhida.

Diante de tal discussão, faz-se necessário e relevante trazer à baila, a natureza jurídica da decisão governamental abarcada na pertinência dos textos jurídica e legalmente constituídos pelo legislador pátrio. Trata-se da condição jurídica dos haitianos justificada pela inteligência da Constituição Federal de 1988 quanto à concessão e perda da nacionalidade (art. 12) e do Estatuto de Estrangeiros, ou seja, a Lei 6.815/1980 c/c o Decreto 86.715/1981 no tocante ao direito de permanecer no Brasil, com direitos iguais aos brasileiros, salvo os direitos políticos, constitucionalmente estipulados (art. 12, parag. 2º e 3º).

Apesar de a Constituição Federal assegurar os mesmos direitos e garantias individuais aos brasileiros e aos estrangeiros, cabe ao Estado soberano regularizar a entrada de estrangeiros (as) em seu território nacional pela concessão de visto, ou seja, autorizar a permanência no país do (a) estrangeiro (a) por um determinado tempo. É uma cortesia e não um direito adquirido do individuo, candidato a ingresso em determinado Estado, concedida pelas autoridades competentes nas embaixadas ou nos consulados ou pela Polícia de fronteiras no território nacional. Competência essa que é conferida à Polícia Federal no Brasil para permitir a entrada do natural do país limítrofe, domiciliado em cidade contígua ao território nacional, respeitados os interesses da segurança nacional, podendo permitir a entrada nos Municípios fronteiriços a seu respectivo país, desde que apresente prova de identidade. (cf. art. 21, Lei 6.815/80)

“Ao estrangeiro que pretenda entrar no território nacional poderá ser concedido visto de transito, de turista, temporário, permanente, de cortesia, oficial e diplomático.” (art. 4º, Lei 6.815/80).

Deve-se saber que a concessão do visto não assegura a entrada automática do estrangeiro porque depende do poder discricionário do executivo através dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores, conforme a modalidade de visto solicitado ou de tratados de cooperação entre Estados.

No tocante aos haitianos, o caso está vinculado à segurança nacional, ao meio ambiente e às normas de direito internacional humanitário. Por razões humanitárias, o governo brasileiro agiu corretamente ao abrir as fronteiras e os braços para acolher aqueles irmãos e irmãs pobres, vítimas de fenômenos naturais e de promessas não cumpridas de reconstrução de Haiti pela comunidade internacional. Não são perseguidos, politicamente, menos ainda por questão de raça, etnia, religião ou nacionalidade. Não são refugiados políticos, mas econômicos e ambientais. A permanência de milhares de haitianos pode ocasionar um problema ambiental pelo princípio de escassez de recursos naturais que o Brasil mal consegue disponibilizar para a sua própria população, podendo, portanto, desencadear conflitos entre nativos e estrangeiros aceitos como refugiados, assim como ocorreu na França e na Itália no caso dos ciganos romenos e dos refugiados africanos na Ilha italiana de Lampedusa.

A corrente que evoca apenas o direito humanitário para acolher os haitianos no território nacional sem estabelecer critérios quanto à entrada deve saber que não há obrigatoriedade para o Estado abrir suas fronteiras no intuito de receber todos os refugiados econômicos. A circulação de estrangeiros em seus municípios fronteiriços pode acarretar graves conseqüências de ordem ambiental pelo aumento de refugiados, política e social, podendo incentivar a xenofobia, os crimes racistas e a disputa pelos recursos naturais, necessários para a sobrevivência de todos. Não se pode minimizar o forte aumento de refugiados para competir no mercado do trabalho com os milhões de nativos desempregados e necessitados, amparados pelos programas sociais Fome Zero, Minha Casa, Minha Vida e Bolsa Família, etc.

Regularizada a situação de haitianos que já ingressaram no território nacional, o governo brasileiro promete a retirada daqueles que estarão em situações irregulares ou ilegais no país. É nesse caso que se faz importante dissipar a confusão da terminologia utilizada por algumas autoridades e jornalistas quanto às modalidades relativas à retirada forçada do estrangeiro do país ou sua saída compulsória, a saber: a deportação, a expulsão e a extradição.

No caso de irregularidade ou ilegalidade na entrada no país, os haitianos não estarão sujeitos à extradição, contrariamente ao que foi dito numa entrevista concedida aos jornalistas por uma autoridade competente. O estrangeiro irregular ou ilegal no país está sujeito à deportação. Será retirado por diversos motivos legalmente estabelecidos pela legislação vigente, podendo ocorrer a entrada irregular no território nacional, pela expiração do visto concedido, pelo exercício de atividades remuneradas incompatíveis com o visto de entrada (turista, trânsito, temporário de estudante, negócios ou visto de cortesia) ou pela falta de autorização de circular longe dos municípios fronteiriços sem visto.

A expulsão de haitianos já com visto permanente poderá acontecer por questões de ordem criminal, econômica ou de interesse nacional, ou seja, quando se justifica atentado contra a ordem política ou social, a tranqüilidade ou a moralidade pública e a economia popular, bem como a prática de procedimento que os torne nocivos à conveniência e aos interesses nacionais, ou quando praticam fraude a fim de obter sua entrada ou permanência no Brasil, ou ainda quando se entregam à vadiagem ou à mendicância e desrespeitam proibição especialmente prevista em lei para estrangeiros ou se negam a se retirar do território nacional em que ingressaram com infração à lei no prazo determinado, não sendo aconselhável a deportação. (cf. art. 65, Lei 6.815/80) Há condições para não expulsar estrangeiro casado com brasileira há mais de cinco anos ou que tiver filho brasileiro sob sua guarda e que dependa dele economicamente. Todavia, a matéria é discutível com a recente jurisprudência pátria.

Quanto à extradição, de conformidade com o art. 76 da Lei acima referida c/c o art. 110, do Decreto 86.715/1981, deve existir um fato considerado crime nas legislações de ambos Estados, ou seja, o Estado requerente e o requerido, bem como a pena prevista em suas respectivas legislações. Envia-se ou remete-se o estrangeiro considerado criminoso ao Estado onde havia cometido o crime para lá cumprir a pena ou responder ao crime. A extradição está condicionada à existência de tratados bilaterais entre Estados ou termo de reciprocidade, tendo aplicação imediata. Pode ocorrer extradição pela via diplomática, contando com a cooperação entre governos estrangeiros. No Brasil, “nenhuma extradição será concedida sem prévio pronunciamento do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre sua legalidade e procedência, não cabendo recurso da decisão.” (art. 83, Lei 6.815/80)

Percebe-se que, no caso de haitianos, não se pode falar em extradição, por se tratar de entrada irregular ou ilegal no país e de exercício de atividades remuneradas incompatíveis com determinada modalidade de visto concedido. Inexistindo crimes, serão simplesmente, deportados para o país de origem por terem entrado ilegalmente no Brasil. Há de ressaltar a complexidade que envolve a política de refugiados em qualquer Estado do mundo porque procura-se proteger os interesses nacionais ante o enorme fluxo de refugiados, podendo criar um desequilíbrio populacional e ambiental nas regiões de fronteiras e uma fuga de turistas, ocasionando, para tanto, incomensuráveis prejuízos econômicos. É uma questão de segurança nacional para evitar reações incomuns das populações nativas relativas à xenofobia e atos racistas. Não é apenas uma questão de o Brasil aplicar as normas que regem o direito internacional humanitário, mas também uma decisão política que deva levar em conta a sustentabilidade econômica dos municípios fronteiriços, a convivência social entre estrangeiros e nativos para evitar o clima de instabilidade provocado na região dos Grandes Lagos no leste da África devido ao fluxo de refugiados ruandeses Hutus e Tutsis durante e após o genocídio em Ruanda.

Para isso, cabe ao Brasil, apesar do princípio da soberania para conceder vistos aos haitianos, pensar também no Mercosul antes de a chegada dos refugiados em “proporções bíblicas” se tornar uma emergência regional com momentos de grande tensão e apreensão nas populações locais, fazendo-se do território brasileiro uma nova Lampedusa sem querer. 

Sebastien Kiwonghi "é advogado e professor de Direito Internacional e Metodologia da Pesquisa na Escola Superior Dom Helder Câmara. Padre Verbita graduado em Filosofia pelo Institut de Philosophie Saint Augustin, IPSA, Zaire (África). Graduado em Teologia pelo Institut de Théologie Eugène de Mazenod, ITEM, Zaire (África). Graduado em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais Vianna Júnior de Juiz de Fora (MG). Especialista em Direito Civil e Processo Civil, em Direito do Trabalho e Previdenciário, licenciatura em filosofia na UFJF. Mestre e doutor em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais."

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